segunda-feira, 29 de junho de 2020

CONTRA OS MEDOS





Quando as mãos no barro
constroem sonhos
de todas as cores
e no branco de uma folha
de papel
se desenham palavras inteiras
vem à tona a luz
muito para lá 
da aparente insignificância
de plantar uma flor
mais vermelha
que os teus lábios

Quando o vento sopra
por entre os dedos
é urgente remar
contra os medos
seduzir a boca das sementes


eufrázio filipe

segunda-feira, 22 de junho de 2020

TORRE DE MENAGEM





Há muitos anos comprámos
na Praça de S. Marcos
uma boneca que fingia ser anjo
e tocava violino

Colocámo-la na mesa de cabeceira
porque afagava bem as cordas
e nos despertava

Todas as manhãs lhe desejávamos
bom dia
num ritual ininteligível
e tudo ficava mais claro

Ainda hoje
com outros olhos começámos a ver
os mesmos retratos nas paredes do cais
a dardejarem na intimidade dos sonhos

com outros olhos
pequenos deuses tangíveis
plantámos árvores e barcos
e começámos a beijar
no chão que pisamos
as belas flores do jacarandá

Ainda hoje
nesta torre de menagem
bastou um sopro para agitar os pássaros
nos mastros mais altos
e a boneca na mesa de cabeceira


eufrázio filipe

segunda-feira, 15 de junho de 2020

A CASA É UMA MÁSCARA






Sincopada a chuva caía 
sacodia as folhas da cerejeira
acariciava o despontar das camélias
quando pressenti que estava
no avesso do tempo que faz

já tinha aberto as portas
mas tu entraste pela janela do vento

percorreste todos os silêncios da casa
em espirais vertiginosas
até pousares devagar
sobre a mesa do alpendre

trazias nos olhos um sol de mãos cheias
um certo cansaço no trinado da voz
longas maresias

afaguei-te a plumagem
à vista dos cães
e disse baixinho para não acordares

a casa é uma máscara

todas as casas são máscaras
que assustam os pássaros


menos a ti


eufrázio filipe

quinta-feira, 11 de junho de 2020

MALDITO VÍRUS




Agora que estão confinados os santos e as marchas populares 
desconfinaram as sardinhas.

Proibidos os fogareiros a carvão, resta-lhes as latas de conserva 
e as máscaras.
Maldito vírus

eufrázio filipe

terça-feira, 2 de junho de 2020

ARTESÃO DE METÁFORAS




Nas margens do rio
onde habito
respiram pautas desertos
retratos íntimos de flores
a preto e branco

repousam mãos famintas

nas margens deste rio
quando a noite amanhecida
não dorme
ouvem-se pêndulos vagares
cadenciados
agitam-se os dedos

o tempo ousado dos poetas
que não eu
artesão de metáforas

No fulgor das águas
desprendo-me
para ver mais claro
o teu corpo antigo baloiçar
nas paredes da casa

porque tudo é sempre novo

eufrázio filipe