terça-feira, 26 de maio de 2015

A SÍNTESE DA TUA NUDEZ






Se a morte existisse
os teus olhos clarinhos
não seriam tão azuis
nem se demoravam nos céus

mas hoje o mar sangrava
espumas brancas 
lenços de linho
pelas ruas deste chão

Quando desenhaste círculos no ar
para traduzir um rumo
contra o vento

à flor das mágoas
já desembarcavam
murais em carne viva

e eu sabia que serias a última
a partir
só não sabia que eras tu

Na verdade
onde se gera a metamorfose
pedra sonho

muito antes da luz afagar
a síntese da tua nudez
todo o espaço exíguo
se liberta


Eufrázio Filipe

 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

NO PÚLPITO DAS CEREJEIRAS







Há um sulco invisível na água
onde viajo
e me transformo

talvez por isso
não faça sentido atear velas
queimar incensos

mexer nos ponteiros do relógio
inventar um barco e partir
folha ante-folha

talvez faça sentido
desbravar fronteiras
repartir afectos gorjeios e migalhas
no púlpito das cerejeiras


Eufrázio Filipe

 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

MAREANTES DO VENTO





Crescemos na nudez das rochas

crescemos e desmaiamos
conforme as marés

Vertemo-nos líquidos
em caudais de sons
ardidos no sal
no delírio da espuma
por todo o corpo

Crescemos na substância das pedras
com asas muito leves

Não somos barco de carregar velas
somos mareantes do vento


Eufrázio Filipe
 

sexta-feira, 8 de maio de 2015

POR ONDE CORRE O MEU RIO






Na mais dura pedra
navegam sargaços de cristal
água possuída de viagens
que o sol lambe

na mais dura pedra
um barco com gestos a dardejar
desperta
como no princípio da fala

matéria cinzelada
sinal infatigável de vida
que nos trespassa de claridades

uma fenda esparsa
por onde corre o meu rio

 Eufrázio Filipe


 

domingo, 3 de maio de 2015

AMAR UMA PEDRA


                                                        republicado



Todas as fendas da água
dão guarida ao movimento e se desnudam
enquanto a pedra partilha os seus esconderijos

na respiração do azul
onde os peixes se eternizam
partem anémonas para os silos dos sonhos
mas só algumas pautas musicais
quebram o ritmo das marés
quando as mãos se tocam
para atear fogueiras dentro de nós

todas as fendas da água
levedadas
entoam hinos
e se transformam na síntese de outros cânticos

só assim se explica como é possível
amar uma pedra


 Eufrázio Filipe