desenho de Mário FilipeEstou a ver a Plaza Mayor, em Madrid. Um belo e amplo espaço rectangular, bordejado de edificios ancestrais, com a mesma cércia. Todos em pedra, madeiras e ferro forjado. Uma longa galeria de lojas a espreitarem pelas arcadas os artistas que por ali trabalham. Um espaço nobre recuperado para a vida, onde apetece ler um livro, ouvir música, nas amplas esplanadas ou sentir o prazer de não fazer nada.
Desta vez e ao contrário do que esperava, a Plaza Mayor estava deserta de tudo. Incrível - até os pombos tinham abandonado o seu poiso preferido na estátua equestre, imponente no centro da praça.
Surpreendido sentei-me num degrau do pedestal da estátua, mesmo por baixo da cabeça do cavalo - para assistir ao lento cair da noite e rascunhar um apontamento para dar voz a tanto silencio.
- ( o silencio é mais verde que o musgo que medra nas fissuras das pedras - paira em todos os poros,habita e dança ao ritmo do pó.
Talvez por isso me apeteça desandar nos teus pés, espreguiçar-me nas ameias do meu castelo preferido e respirar o brilho gaiato dos teus olhos na folhagem. Talvez por isso me apeteça soprar-te nas pétalas para ver estrelas no céu, ouvir Norah Jones, atear uma fogueira e viajar tranquilo por toda as azinhagas).
De súbito - um clique uníssono e estridente acendeu os candeeiros públicos. Despertei da bela letargia - interrompi o rascunho.
Levantei-me - dei ainda duas voltas pelas galerias, subi e desci escadarias centenárias, confirmei o deserto.
Inesperadamente tropecei no Botim - considerado o mais antigo restaurante do mundo, na rua dos Cuchilleros.
Quando entrei a porta de madeira rangeu. Imediatamente comecei a gostar da visita a esta catedral da gastronomia - um casamento feliz onde respirei o conforto dos espaços compartimentados, a cozinha rasgada para os olhos, a extrema simplicidade do bom gosto.
Manolo de la Peña, cem quilos de peso à vista desarmada, bochechas avermelhadas pelo forno da lenha e farda branca a rigor, passeava as suas banhas e simpatia pelas mesas dos escassos clientes.
Chegou entretanto a minha vez de ser atendido.
- Sabia que o símbolo de Madrid foi extraído da lenda do urso e do medronheiro? Aconteceu um conflito medieval entre os poderes do reino e eclesiástico com o povo calado mas atento. Ambos queriam a posse da terra - como se não fosse de quem a trabalha. O medronheiro parece ter sido inventado mas o urso ainda existe.
Tentei entender a explicação do Manolo e até lhe falei do nosso Bordalo Pinheiro enquanto partilhávamos sorrisos. Ainda tentei esclarecer o insólito deserto da Plaza Mayor quando de repente as luzes do Botim se apagaram.
No lusco-fusco das velas o Manolo ia dizendo quase em surdina - senhores hay mierda.
Com delicados empurrões lá fui com os outros - porta fora.
De facto o Botim fechava a porta - que desta vez não rangeu.
Na rua dos Cuchileros alguem vociferava àcerca do rebentamento de dois petardos na cidade.
Surpreendentemente ingénuo - percorri de novo as galerias desertas e tentei compreender melhor as pedras da calçada, o isolamento da estátua equestre, a fuga dos pombos, o preço da refeição,o tratado de Mashstricht, a boina basca nas montras dos turistas, a vontade incontornável de um povo pela condução dos seus próprios destinos, a minha coluna vertebral e o desaparecimento do meu rascunho.
No dia seguinte, o Botim - alquebrado pelos anos - cuidava das artroses mas resistia na memória das pedras, com trabalhadores gentis perfilados junto à cozinha.
Com a naturalidade possível dirigi-me a uma das salas e amistosamente declarei:
- Senhor Manolo, a história do urso e do medronheiro é uma lenda ou a coisa existe em versão modificada nos dias de hoje?
Para meu espanto ,da cozinha, uma voz feminina, serena mas firme lia o meu apontamento:
- Sopro-te nas pétalas para ver estrelas no céu.
E eu - saí.