quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

MARINHAS VALENTES


No chão dos marnotos caminhamos azinhagas, comemos amoras, tropeçamos memórias, pedras, pérolas e pó - para compreendermos melhor as palavras de carne e osso até as metáforas se ajoelharem como pequenos deuses inúteis, à nossa mesa.

Só depois provamos o sal das marinhas. A safra.
O tempo dos homens que se chafurdam no moliço.
A distancia que nos atrai e separa, a pele esfarrapada para resistir aos Invernos, mastros de flores salgadas nos olhos distantes a gatinharem no tempo, até ao aborrecimento final.

Após a "botadela" a marinha começa a parir uma massa branca que envaidece os homens quando se olham
nas sombras curvas projectadas na água.

O sal aparece ao ar livre. Reunido em montículos junto aos tabuleiros das marinhas e
aí fica a escorrer as últimas lágrimas. Depois é o marnoto que enche canastras transportadas à cabeça dos moços. Depois é sempre assim. O mesmo peso até estar construído o grande cone branco.

Antes de regressarmos às azinhagas e comermos o resto das amoras, os homens reunem-se ao cair do dia, para festejar.

Enquanto se embebedam, cantam com a ajuda de uma gaita de beiços. Há sempre um que vomita e volta a cantar.

São os rudes corações de oiro, meninos triturados, construtores de marinhas valentes. São os que transformam água em pão, enquanto à nossa mesa se ajoelham as metáforas.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

VOZES DE PÁSSAROS NA SOMBRA DOS CÃES


Tímbricas as vozes resgatadas aos pássaros silvestres, mesmo que a chuva purificada se precipite nas nossas asas improváveis.
Cantam a horas certas mas nós continuamos a não reconhecê-los pela voz.
Não fora ainda a sombra dos cães no espelho da água, a deslocar-se vagarosa - como seria possível saber ouvir em silêncio o ladrar desta vida?
Na verdade atravessámos uma série de estações, apeadeiros vertiginosos, com mais ou menos estrume na caldeira das árvores, mais poda menos poda, nos tempos incertos de sempre, só para projectarmos palavras insondáveis.
- Os cães só têm força no maxilar inferior. Se o prender com o polegar não será mordido.
- Nunca dei grande valor a esse dedo. Está a desconversar.
- Confirmo que a Lassie está grávida.
- Não prescindo do perfume que os livros me oferecem, nem do insuportável pó das bibliotecas.
- Reparo que não está disponível, mas recordo que foram os cães que nos aproximaram.
- Nós aproximámos os cães.
- Seja como for, os velhos não deviam ter idade para mentir.
- Que idade tem a sua cadela?
- É inocente.
- O Dique está no ciclo confortável dos que desejam ser avós, mas ainda não têm filhos.
- Estamos perante uma agradável desconstrução da fala.
- Faz recordar-me Lobo Antunes que já não se considera escritor mas tão só um instrumento de Deus para a escrita. Pegam-lhe na mão e ele escreve.
- Está a desconversar.
- Oiça. Era uma vez um país à beira-mar betonado, paraíso de lágrimas a prestações. Um deserto de braços caídos e alguns resistentes. Duas lágrimas hoje, uma outra amanhã. Lágrimas nunca choradas ao mesmo tempo, com medo de se afogarem.
- Fui eu que lhe peguei nas mãos.
- Por um instante oiça como são harmónicas e aveludadas as vozes dos pássaros na sombra dos cães. Como tudo se move e transforma neste palco, a partir do nada.
- A noite caíu para nos abrir os olhos.

- Certo. Traga os cães. A partir de hoje seremos uma família. De facto.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

ILHAS ADJACENTES




Na alquimia do tempo que faz, há sempre um albatroz que atravessa as arcadas da memória, desfaz-se em gestos de ternura, dissolve-se no pôr-do-sol, invade-nos o sonho, passo a passo.

- Desejo que germines em vagas nas arribas, que rebentes a marulhar no labirinto das areias.

- Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas. Desejo-me ficar aqui no perfume dos limos, mesmo que as vagas só despertem por sobre os restos do último naufrágio.

- Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos.

- As melhores viagens acontecem sempre antes da partida e no regresso. No ciclo das marés. Só assim consigo partilhar o ardor das velas do nosso mar.

- Pareces a ministra que conheci no dia da remodelação do governo.

- Meu amor - rema.

- Não consigo dormir.

- Vamos fazer amor?

- Só nos espelhos.

- Hoje não estou a gostar do modo como os espelhos nos olham. Este rio está uma sopa. Ressoa brando na fissura das pedras.

Repara como a praia deserta se amontoa de areias sem abrigo.



Inesperadamente um albatroz poisou magestoso, aos nossos pés. Fixou-nos com olhos vivos e perguntou-nos baixinho num afago de asas - " de que cor são os meus olhos? " - e tu não soubeste responder.

- Apetece-me viajar. Porque não vamos ao Bugio?


Construimos um barquinho de papel e partimos ao sabor da brisa.

Lá estava, sentado nas águas do rio, imponente, coluna na vertical e sereno. Sábia fortaleza, sempre alerta - hoje um farol a piscar os olhos no estuário do Tejo, como nós - ilhas adjacentes.


- Vamos fazer amor?

- Ainda não disseste a cor dos meus olhos

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

ACENDAM AS VELAS


Sempre convidamos a nossa avó quando se prevê tempestade, de preferencia com relâmpagos e ventos fortes.
A nossa avó é uma jovem princesa, um cristal que ressoa marés e adora o tempo agreste.
Sempre desafiou sonhos impossíveis - mas com alguns conquistados, projecta-nos amanhãs.
A nossa avó sempre nos disse que não era perfeita por não acreditar em verdades absolutas. Acredita na poesia. Menos nos poetas, criaturas artesãs de palavras que almejam aproximar-se dos deuses para morrerem com eles, talvez mais infelizes.
A nossa avó nunca explicou esta aparente contradição - talvez por isso não tolere um convite para um dia de tempestade que não se cumpra com relâmpagos.
A previsão de intempérie para o fim-de-semana, afoitou-nos para um convite à nossa avó, que aceitou e foi recebida com todos os detalhes.
Ficámos felizes - nós e os cães.
Reunidos assistimos às horas que passavam. Desaguámos em conversas de família e memórias. Recitámos Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, David Mourão Ferreira e José Gomes Ferreira.
Os cães junto à lareira abanavam o rabo e davam sinais de nervoso. Estávamos bem mas a tempestade tardava.
De súbito, lá fora, a chuva dava inicio a um concerto magnifico. Em crescendo. Precipitava-se com força. muita força. Torrencial. Com relâmpagos. Um dilúvio a ribombar.
- Abram as portas.
Abrigados no alpendre assistimos ao espectáculo. Coisa linda.
Os cães nem tossiam, e a nossa avó - em festa, com olhos gulosos e meigos, afagava os trovões.
Ainda mais felizes ficámos quando um relâmpago mais forte apagou todas as luzes da azinhaga e da casa. No escuro a tempestade vivificava a negritude. Purificáva-nos.
Mais tarde o tempo amainou. Recolhemo-nos. Acendemos velas e candeeiros a petróleo. Sentámo-nos à mesa.
- Reparem como após o magnifico concerto, também aqui são belas as imagens da sombra, os retratos nas paredes. Como se evidenciam os contornos dos objectos, a arquitetura dos sons. Como respiram os nossos rostos e tudo se movimenta. Simplesmente tudo se move ao ritmo dos afectos recriados pela luz das velas. Reparem como fruimos dos sons quando o silencio se cala para nos aproximarmos mais uns dos outros. Como tudo isto seria um paraíso se fosse uma opção e não uma circunstancia.
- Avó - agora também não temos alternativa e isso doi-me.
- Pois é, mas sabes que um qualquer desconhecido
está a trabalhar para resolver o teu maior desejo.
Os cães só abanavam o rabo quando a avó falava. Talvez por isso fizemos uma pausa breve até que uma voz grave mas pautada começou a interpretar um tema de jaze, precisamente quando regressou a luz eléctrica e nós de imediato soprámos as velas.
- Por favor. Ainda não terminei. Apaguem as luzes. Acendam as velas.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

SEARA NOVA



Seara Nova - uma revista que continua a ousar ser livre - escrita e dirigida por homens e mulheres livres.