desenho de Mário FilipeEstava o magnifico galinheiro reunido nos poleiros tradicionais -
dramaticamente com poderes absolutos - flamejante e tartufo na discussão de mais um esquelético e estrábico orçamento restritivo
para a comunidade carenciada,quando aflorámos uma ideia antiga
e muito familiar do nosso quotidiano comum.
Como colocar um pauzinho nesta engrenagem?
Na verdade - apesar de tanto cacarejar aveludado,tinhamos quase afónico - um galo espartano - a chefiar uma tribo de 12 poedeiras
sequestradas.
Não foi por ser afónico,mas pelos seus tiques espartanos que sentimos
a necessidade de um tenor menos austero,para dar outra cor à vida
em comunidade.
Na verdade - uma coisa é ser chefe,outra é ser lider.Uma coisa é ser
empresário,outra é ser patrão,trabalhador ou empregado.
Entretanto o tempo passava inexorável e ninguém sugeria um Pavaroti
credível,democrático,sensível aos que mais penam - um tenor que desse a volta ao orçamento restritivo.
Viajámos um dia para o monte Barranco do Bebedouro e foi ali,
na delícia de uns pèzinhos de coentrada,que aconteceu uma conversa
interessante àcerca da arte de colocar pauzinhos nas engrenagens.
O amigo Anastácio que há muitos anos faz milagres de artesão com
o seu canivete de lâmina finíssima,levantou-se e disse com voz embargada
- Para o caso vertente,vou oferecer-vos um casal de pombos alentejanos da minha confiança.
Numa caixa de papelão,com respiradouros ternamente executados,
o amigo Anastácio ofereceu-nos a solução e todos ftcámos mudos e agradecidos.Assim - sem mais palavras.
Um casal de pombos.O Campaniço e a Soalheira.
A fêmea,plumagem cor da hulha.O macho,branco como a cal.
Lindos.Ela - olhos verdes alface,muito vivos,pernas esguias mas torneadas,rabo espetado,pescoço esbelto,ex-modelo em concursos
columbófilos.Ele - porte atlético,campeão de maratonas,de poucas
falas,tipo engenheiro nos excedentários da função pública.
Os novos residentes,oriundos de uma família numerosa,humilde e trabalhadora,foram instalados no magnífico galinheiro,pela calada
da noite,por uma questão de bom senso.
Tinham que adaptar-se e reagir à crise nacional do tempo que faz-
considerar o período da caça com os homens à solta - ao galo espartano
e até às poedeiras iludidas de quando em vez a chocarem ovos supostamente galados.
Ao raiar da aurora,verificámos que à mínima distração o galo malhava nos pombos que se levantavam do chão e cantavam,cantavam,
- cantavam hinos populares,criatividades amorosas.
O galo afónico e arrogante no preciso momento em que os pombos estavam a arrulhar - inesperadamente - libertou pela primeira vez na sua vida - um dó sustenido quase perfeito,e eu gritei
- Finalmente o galo cantou.
Retificámos imediatamente o orçamento restritivo.
Soltámos os pombos e as poedeiras.
O galo ficou a cantar sózinho.