sexta-feira, 30 de outubro de 2009

ESTAMOS SEMPRE A PARTIR



Antes da chuva nos bater à porta
já tinhamos sonhado
agitar tempestades

só nos faltava construir
um caminho certo para os barcos

Partimos rumo ao improvável
sem repouso infinitos
inocentes

nós e a chuva

em segredo estradas fora
construimos um barco
inventámos uma estrela
para seguir as aves
em pleno voo

Partimos antes da chuva
sem conhecer o destino das tempestades
muito menos o frémito
do tempo que faz

Vamos partir?
Estamos sempre a partir
e a chegar.



terça-feira, 27 de outubro de 2009

PRESO DE UM BEIJO



Quando chegas de mãos dadas
a rasgar neblinas
não fosse a obstinação
de olhar um desejo
já os barcos ardiam
na fímbria do mar
gestos mastros velas
até a âncora que me solta
nas metáforas

Quando chegas sem nome
cúmplice da água
não fosse o cântaro de barro
te afagar os lábios
para matar a sede às palavras
já teríamos criado outro deus
na inconsistência das salivas


Quando chegas
como se fosse a primeira vez
se não fosse
tudo seria inútil no teu corpo
mas eu continuaria preso
de um beijo


Quando chegas?




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O CHÃO DOS BARCOS




Lá fora os céus liquefeitos
tombam abruptos
dividem-se nos telhados
estatelam-se nos teus olhos

Apócrifas aves quase divinas
em poses magestáticas
lançam arrufos de ternura
desfolham-se infinitas
em silêncios sibilinos
de asas ventos e remos

Lá fora os céus coados
fingem que são chuva
e eu debruço-me
a meio da ponte
só para ver a água deste rio

o chão dos barcos



domingo, 18 de outubro de 2009

NA SÍNTESE DA TUA NUDEZ




As romãs estavam a abrir
em bagos vermelhos na tua boca

ao fundo a erva crescia desmesurada
por sobre a mesa e as cadeiras
onde sentamos os silêncios

quase todos

porque ainda reservamos passos
e asas na memória comprometida
bago a bago
folha ante folha
para não acordar os pássaros

Ali ao fundo vagueiam sem amos
madeixas de vento por um fio

Neste caminhar traço a carvão
nas paredes da casa
o teu corpo livre de sombras
desnudo-me com as romãs
na síntese da tua nudez

domingo, 11 de outubro de 2009

CAÇADOR DE RELÂMPAGOS




Um dia disseste que todas as estações são apeadeiros do meu corpo e eu respondi-te que uma folha caía a teus pés e tu disseste que não eram os teus pés mas tão só dois pedestais. Estávamos de novo no Outono e tu surpreendeste-me porque sabias que a folha caíu aos teus pés e voltaste a dizer mas de outro modo - Ai se os meus pés fossem pedestais.
Foi então em conversa com um grupo de árvores que todas me disseram para não reparar nas folhas que caem porque sempre  algumas se levantam e  até as persistentes gostam de um sopro para voar.

Quando a meio da noite, ainda os galos não cantavam, entendeste por bem revelar-me um segredo e disseste baixinho, para eu acordar devagar
-- Fui convidada para de novo assumir a pasta da cultura. Tenho 24 horas para decidir.
A fingir de sonâmbulo respondi-te em surdina
-- Eu tenho um convite para a debulha do trigo na Malhada dos Porcos.
-- Tudo bem, ajuda a reflectir.

Partimos. O percurso tinha boas memórias. Abandonámos a via principal, invadimos as azinhagas. Libertámo-nos no pó das coisas simples. Transcendemos o caminho. Voámos. Assumimos a dimensão do espaço e recordámos uma experiência que não resultou, não sei porquê.
-- Pensei ocultar os teus olhos nos meus só para te olhar mais de perto. Recordas-te?
-- Foi quando te revelei o meu hábito de olhar o chão.
-- Quando tropeçaste uma pedra para atirar à sombra dos pássaros.

Chegámos à Malhada dos Porcos. Já estavam a borrifar o chão da eira com água do riacho. Todos em redor e de mãos dadas. Em movimento quando entraram tímidas as ovelhas. Cantámos.
Circulámos com os animais. Calcámos o chão. Uma festa de amigos.
A roda com o tempo estreitava-se aos poucos até as ovelhas saírem, finalmente livres para os estábulos.
Agradecidos batemos palmas aos animais.
Entretanto chegou o acordeão e a guitarra campaniça. Começou o baile e os petiscos com doces conventuais até o chão ficar duro para no dia seguinte o trigo ser malhado.
-- Uma vergonha.
-- Não sei porquê.
-- Porque adormecemos altas horas na eira, por cima do cereal.
-- Ainda comemos pão daquele trigo.

A luz apagou-se. Acende os candeeiros. A trovoada aproxima-se.
-- Já não se pode dormir nesta casa.
-- Uma vez mais as belas trovoadas, a chuva a lubrificar a terra e os cães que não guardam relâmpagos a protegerem-se na casa dos donos.
-- Abre-lhes as portas.
Esta trovoada brinca aos relâmpagos. Vai e vem, ululante, ribomba nas fortes bátegas. Parece o fim do mundo mas é tão só uma violentíssima trovoada.
-- Ouviste?
-- Um estoiro no jardim.
-- Que belo estoiro.
-- Não me digas que o pára-raios caçou um relâmpago.

-- Recomeçamos?
-- A história da folha aos teus pés? A Malhada dos Porcos?
Já passou.
-- As 24 horas para decidires também já passaram.  Serás a ministra dos meus galinheiros e eu vou aprender a caçar relâmpagos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

COMO SE TIVESSEMOS UM BARCO


                                    Joaquin Sorrolla y Bastida


As palavras vogavam soltas
em torrente
alagavam sapais
caldeiras de moinhos

As garças tricotavam pios afrodisíacos
e as canoas lançavam redes
para cercar os peixes
nas marés vivas

Os teus olhos debruçados na margem
circulavam em turvelinho
afagavam a faina

Quando nos soltámos crescemos
e lá fomos barra fora

como se tivéssemos um barco
que não anoitecesse