quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

BOAS JANEIRAS






Fundidos
à míngua de relâmpagos
que se vejam
ateados à passagem
de mais um ano

dezembrando

boas janeiras


 

sábado, 21 de dezembro de 2013

TUDO PELO MELHOR





Em família e outros amigos

Tudo pelo melhor


sábado, 14 de dezembro de 2013

O NATAL VAI COMEÇAR



                                         
                                  
                                



O Inverno faz as pessoas recolherem às cavernas para melhor se amarem.
Sacode-se nas árvores penadas, inventa polícromos arco-íris, manifesta-se quase lúcido contra a perfeição, faz trejeitos ao rosto. Ri-se nos olhos de toda a gente.
Lá no alto, por cima das nuvens de chumbo, levanta a voz dos relâmpagos e às primeiras pancadas de Molière, abre o pano. Vem ao palco e anuncia:

- Senhoras e senhores, a fábula " é uma pintura onde podemos encontrar o nosso retrato " .
- Que dia é hoje?
- Silêncio.
- Senhoras e senhores, meus amores pequeninos, ides assistir à mais fabulosa história da minha estação.

As luzinhas furta-cores são as mesmas. O mesmo barro, o mesmo pinheiro, o mesmo musgo, as mesmas pedras. A mesma estrelinha na carapinha do mesmo presépio. O mesmo rebanho, os mesmos pastores, a mesma palha, o mesmo bafo.

Ides ser cúmplices dos animais, dos anjos que vão cair pelas chaminés nos sapatinhos dos meninos ajoelhados  - até ao momento em que um qualquer galo cantará.

Lá fora as ruas estarão um sonho - até nos olhos colados dos outros meninos, na montra dos céus.

Tudo será luz nas casas iluminadas, nos corações vibrantes, menos nos olhos sem abrigo.

- Senhoras e senhores - vai chover. Amai-vos uns aos outros.

Eu sou o Inverno e o Natal vai começar


 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 8 )



 

 
 
 Com um dedo escrevi palavras nos teus lábios e tu disseste que melhor seria falar por gestos. Foi assim que decidimos navegar abolir todos os destinos agitar as águas.
Gáveas ao alto âncoras levantadas vigílias abertas sem vírgulas - aqui neste chão de claridades - recomeçaram os sons de Tchaikovsky e as sombras vivas dançaram na luz vertebrada dos pavios para os objectos mais íntimos se projectarem nas paredes do cais.
Desiguais pensávamos nos apeadeiros. Reconhecíamos que a gravidade das luas não é homogénea muito menos os seus impactos quando relampejam nos nossos olhos às mãos cheias.
No mais claro das noites trazias mares no regaço. Difícil foi deixar nas ameias o perfume das algas o marulhar das marés.
Na verdade bastava um toque à flor da pele atear um fósforo só para te ver infinitamente grande ventre de grânulos vermelhos a respirar por guelras em todos os mastros - como se fossemos de novo crianças a rasgar caminhos e as flores pintadas à mão renascessem nesta desordem de cores nos jardins.
 
 
 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

NELSON MANDELA UM RIO CAUDALOSO





Nelson Mandela não foi um homem bafejado por divindades - foi um HOMEM íntegro, de carne e osso, soldado maior que o exército desavindo seguiu.

Na vida há HOMENS incomensuráveis, de quando em vez, extraordinários exemplos singulares - que sonham mais alto e se tornam bandeira, herança de luta.

Mandela foi uma minoria esclarecida que se expandiu como um rio caudaloso, em delta, até os céus e o mar se tornarem mais azuis.


 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 7 )







O Inverno gatinhava os primeiros passos, prometia  chuva abrupta e ventos norte, mas não passava de uma estação dócil , instalado na corrente das marés.
Reunidos no porão, começámos a falar coisas improváveis como se fossem verdades absolutas - e eram - tão verdadeiras as verdades que dizíamos, que nem pareciam improváveis.
A mesa estava posta mas a história não era linear à luz entristecida dos relâmpagos.
Nós sabíamos quase proféticos que uma colisão de galáxias faria explodir luminosidades no chão que pisamos e só um deus poderia criar Pandora.
Recordei o dia em que me desnudei para dizer a uma pedra com vida por dentro - o amor é revolucionário - e a pedra em chama se levantou.
Estávamos reunidos no porão, à margem do cântico dos pássaros, quando alguém fez um apelo - não contaminem as águas - e o barco sem que nos apercebêssemos aflorou um areal.
A noite não estava clara mas via-se perfeitamente nos apeadeiros da vida.
A reunião terminou sem conclusões. Desembarcámos a pensar uma vez mais ter descoberto a Taprobana .
O Dique ladrou com ternura para as estrelas e ao longe, ali tão perto, um vulto belíssimo, de contornos ancestrais seduziu-nos como se estivéssemos no princípio da fala.
A caixa foi aberta. Testemunhámos o improvável.
Lá no fundo, liberta de todos os males, sem mácula - a nossa romã dava sinais de acreditar.

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 6 )






Por tempo indeterminado, em chama, sem perder o sentido do voo, mais leves que as cinzas descobrimos um acesso - e foi por aí que rasgámos fronteiras, o teu corpo de pátria amovível.
Nós sabíamos que não basta ter razão para voar, construir sonhos com paus de fósforo - mas também sabíamos que por uma nesga de sol alumiávamos espaços desconhecidos, arestas de vento.
Foi por aí que navegámos por sobre as pedras contra o culto das personalidades, para evitar a profanação das metáforas.
Nós sabíamos despertar luas-cheias, vivificar os olhos dos peixes, tocar sinos a rebate e dar gritos na boca das sementes.

Alguém nos perguntou - a floresta, a árvore ou o galho? - e nós respondemos - a vida inteira.

Foi assim a pelejar contra Alísios e Adamastores que exultámos a Taprobana.
É verdade. Com águas nem sempres de feição, correntes de ar a invadirem portas e janelas até aos porões - o nosso mais íntimo da pele - sem nunca permitirmos a falta de um bago de romã no mastro mais alto da vida.
Foi assim andarilhos que discernimos as gáveas na rota das aves.

Quando pensámos ter chegado - limitei-me a olhar os teus olhos no espelho. E já foi tanto.


 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A NOSSA ROMÃ (5)






Contra natura pajem ainda sem idade para ter espada, despida de névoas, derramou-se a romãzeira - num chão de águas para cumprir sementeiras - mas foi na fímbria do mar que te vi sedutora.
As margens não sei de quê soluçavam-te os olhos mas ainda havia espaço no bairro para cantar.
Os barcos ao vento tinham largado amarras e eu disse benditos os palcos silvestres onde se representa a vida no avesso, com pássaros a céu aberto.
Quando te vi assim despida de névoas, nem proprietária nem propriedade, recordei por instantes o Dique na Taprobana que me disse - não quero ser cão de barro como me encontraste à beira da estrada, na Volta da Pedra.
Quando te vi assim despida de névoas, recordei o podador a decepar-te e a dizer-me - quer uma árvore de fruta ou só para dar sombra?
Reconheço que à vista dos olhos, não é fácil desbravar caminhos nem palavras - a menos que sejam improváveis.
Às armas, às armas meu amor.


 

sábado, 16 de novembro de 2013

A NOSSA ROMÃ (4)







A remoinhar desertos e tempestades, acordámos à vista da Taprobana que só existe por tão desejada.
Na mítica Taprobana, lá para os lados de um chão de azuis e outros céus estava tudo no seu lugar.
A fragância inebriante das algas nas narinas do vento, o bolor à superfície, os retratos nas paredes da casa - fios de música pendurados nas árvores de fruto para adocicar os melros, a partilha do pó pelos melhores objectos, a biblioteca
perfilada nas memórias, ténues sinais, utopias que alimentam o pomar onde plantamos sonhos em voz alta.
Na mítica Taprobana  não vi cegos de concertina nas esquinas , amanhãs violados por uma côdea, nem procissões.
Estava tudo no seu lugar. Até as palavras nómadas, reconstruídas a céu aberto, bosques vertebrados, espaços encantatórios, multidões em andamento para concertos de violino e piano, santuários de pássaros, relâmpagos às mãos-cheias a dardejar no cais.
A nossa romã.
Na verdade a Taprobana talvez exista se continuarmos a desbravar caminhos improváveis.
Atento militante da vida - o Dique, pela primeira vez, ladrou.
Pousei a caneta, rasguei a folha de papel.
Olhei-o nos olhos e disse-lhe com ternura - a partir de hoje és um cão.


 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 3)






Sem pátria conhecida nem fronteiras, aparentemente livres, migrantes até onde os olhos alcançam, sempre residimos nos apeadeiros da vida, a despontar do caos, silvestres conforme as estações e a noção do voo.
Foi assim que acordei a fazer versos ou quase nada, neste chão de rastos onde os sonhos sonhados se levantam nos mastros mais altos e a indignação é um acto de sabedoria contra a indiferença.
Foi assim que acordei.
Perguntei ao Dique - o meu velho cão de barro - se estava disponível para uma viagem - e ele disse que sim.
Peguei na caneta e numa folha de papel. Levei-o comigo. Fiz-me ao mar à caça de relâmpagos.
Partimos para lá da Taprobana contra o silêncio dos que vegetam destinos conhecidos, a carregar andores, a soletrar pelos dedos, a cantarolar em redor dos coretos.
Seguimos o trilho dos ventos, contra a corrente, rumo ao início dos sonhos.
Lá estavas - mais vermelha que os teus lábios.


 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 2 )






A desoras ouvia Quiet Nights quando um barco de papel escrito à mão aconteceu para acordar os pássaros.
Com Dianna Krall ousei invadir espaços proibidos nesta ilha escarpada. A chuva caía na boca dos amantes.
Foi assim. Não previ o tempo livre nos ponteiros parados do relógio e saí.
Chovia a cântaros. O caminho em terra lavrada não tinha poros suficientes. Faltavam os belos relâmpagos mas o vento assobiava coisas lindas.
Foi assim encantado que atravessei o dilúvio contra a corrente.
Na verdade - mais importante que as pontes são os rios indomáveis.
Só não previ a berma do aceiro numa curva submersa e ali fiquei, no fim do mundo, à porta da casa.
Abri a janela do carro e observei um rio colossal a correr à pergunta de uma saída para o mar.
Ali fiquei encantado uma vida quase inteira, até entrar no café do senhor Abílio, onde todos falavam da tempestade e das colheitas dizimadas.
A chuva parou. Fez-se silêncio.
Um homem a esbracejar subiu para o tampo de uma mesa. Pediu a palavra e chorou o tempo que faz.
Os cães ladraram para os céus quando lhes disse que estava de regresso à escarpa. Uivaram como de costume as suas rezas.
Quando cheguei - o vento arredondava arestas na memória das pedras - e eu só tinha que fazer o que fiz.
Perguntei à romãzeira - que hei-de fazer senão amar-te ?


 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A NOSSA ROMÃ ( 1 )







Nesta ilha de náufragos e jangadas imperfeitas as romãs abriam os lábios explodiam multidões. Os cães adivinhavam o brilho dos relâmpagos e tu caías abrupta nos meus braços.
Quando te ouvi assim a cair dos céus, desamparada a lubrificar a terra, não sabia o teu nome, muito menos como te beijar os pés.
Quando te vi assim pendente, incolor, nua de tudo, chamei-te um nome qualquer e tu chegaste a cântaros, tão líquida por entre os dedos.
Recebi-te quase ninfa, de braços abertos na minha escarpa e assim ficámos vagarosos instantes a respirar eternidades.
Ainda hoje não sei quem és senhora.
Trazias nos cabelos um mar desgrenhado a derramar estrelas em cânticos sibilinos, barcos do outro lado do cais.
Fiquei sem saber se existias de facto ou teria sido eu a inventar-te.
Escancarei as janelas, acendi um fósforo no alpendre da casa, e tu lá estavas a cair dos céus, sem muros nem ameias, a cantar.
Visitavas museus, sombras de luz mas não  eras simpatizante da luta de classes. Tinhas um Cristo crucificado nos olhos, uma vontade serena de liberdade, uma biblioteca onde se destacam textos apócrifos mas também vivificam Jorge Amado, Soeiro Pereira Gomes.
Se tivesse que te desenhar faria um gesto, um risco a carvão no ar que respiramos, bebia-te às mãos cheias e partia até ao fim do voo inventado, mas deixaria na tua árvore preferida uma romã.


 

domingo, 27 de outubro de 2013

O PÃO CRESCEU NAS NOSSAS BOCAS



                                            publicado no meu  "Para lá do azul"



Ver-te assim tão indecifrável
nos contornos e nas arestas
ancorada nas marés
em chama viva
a entrar pela casa vazia
sem desistir do silêncio
a resistir mesmo quando doem
os passos e as pontes
fez-me pedir ajuda
a um cântaro de água fresca
às pedras que cantam e tropeçam
nos pés das videiras

foi assim que nos despimos
e vindimámos
para os barcos cumprirem
o seu efémero destino

As uvas morreram nas tuas mãos
mas o pão cresceu nas nossas bocas


 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A FINGIR DE PÁSSAROS






A minha escarpa
tem uma janela
escancarada para o mar

mesmo por sobre
barcos de passagem
latidos de cães
e metáforas

Neste sítio fustigado
onde nidificam
ventos e relâmpagos
ouvi um grito
em carne viva
mais real que os verdadeiros

soltei-o
e as palavras voaram
a fingir de pássaros

 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

ONDE TEMOS POR HÁBITO ADORMECER







Estalajadeira
com mais longevidade

tantas voltas deu ao vento
pelos campos deste mar
que mais tempo temos
para morrer

Afastada dos belos precipícios
no seu jeito de ninfa
debruçada na escarpa
por sobre apeadeiros
nas paredes da casa

aguarda um barco
ou um bando de pássaros

mas sempre descobre histórias
inventadas
e recomeça a navegar

até a noite das luas cheias
se desvendar
num fio de música

onde temos por hábito
adormecer


 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

AVIÕES DE PAPEL






Há noites tão pardas
que nem parecem noites

Se as noites sonhadas
fossem mares escancarados
poderíamos em carne viva
respirar uma flor
estremecida
no pestanejar dos olhos

assim
viajantes apócrifos
mais leves que o voo
nesta feira de pássaros
sem pátria nem rosto

como poderemos ver mais longe?

hastear um beijo
no outro lado do cais

ser de novo crianças
e fazer das palavras
aviões de papel

 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O NOSSO JAZE



                                Memória do "LAU" um puro amigo SERRA DA ESTRÊLA



Ainda o sol gatinhava
os primeiros raios
quando te vi assim meu amigo
de olhos turvos
à sombra da oliveira

chorei contigo
mas de nada valeu o nosso choro

Num instante de luz
apareceste trôpego
mas chegaste
ao teu sítio preferido
junto à aparelhagem de sons

fotografaste a casa e morreste

Ladrei em surdina
fiquei de rastos
a ouvir o nosso jaze


 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

AINDA HOJE TE CHAMO ESCARPA



                                                 "CHÃO DE CLARIDADES" colectânea  (2008/2012)



Inesperada uma lágrima
na rebentação das águas
fez-me andar eternidades
silêncios de carne e osso
à pergunta dos teus relâmpagos

inverosímil lá estavas
íntegra
a dedilhar uma pedra
nos passos da areia

num afago de mãos
a colher o perfume silvestre
das maresias

tinhas um cristo
cruxificado nos olhos
e eu não sabia
se te chamavas pedra
barco flor ou pássaro

ainda hoje te chamo escarpa


 

sábado, 28 de setembro de 2013

A PROFANAÇÃO DAS METÁFORAS




                                          "A profanação das metáforas"
                                                                (publicado em 1994)



Desprendemos os céus de todas as preces
regressámos às dunas sibilinas
alados azuis milenares
e começámos a escrever em liberdade
verdades improváveis


 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

JANGADA



                                               "Mar Arável"   1988



Minha jangada disponível para os lábios

porque reúnes tantas claridades?
e te entregas quase ilegível ao poema?

porque te espantas florida de pequenos nadas?

porque rebentas coração e te transportas?

porque finges ser jangada?


 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ANTÓNIO RAMOS ROSA





Morreu hoje um grande Homem
o poeta da luz interior

Não deixemos morrer
os nossos mortos

 

sábado, 21 de setembro de 2013

GUARDA-RIOS






Livres
na placidez exuberante
livres
nas margens de tudo
sequestrados no paraíso
por relâmpagos
que nunca mais chegam
agitam inocentes
águas doces
em busca de uma luz
na sombra das pontes

quedam-se nos apeadeiros do rio
sussurram aladas
lágrimas correntes
num choro compulsivo

Nas margens de tudo
há um barco
que rema
os seus olhos

 

domingo, 15 de setembro de 2013

NO PULMÃO DAS MARÉS






Neste porto desobrigado de fronteiras
e outros céus
vem à tona a energia imperecível
dos desertos
o perfil escarpado da luz
fragmentos de círculo

Nesta apoteose de neblinas
defino a brancura do teu corpo
de pátria movediça
como um prado onde refulgem
transfigurações de barcos
rumores de outros mares

Amo esta janela com vista para o vento
onde é possível ser eterno
por um instante
povoar o silêncio errante das metáforas
e viver apaixonado
no pulmão das marés


 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A REMAR AS ÁGUAS






Sei que lanças pedras
com vida por dentro
para acordar os pássaros
escreves palavras
mais leves que as cinzas

sei-te encantatória
vertebrada
passo a passo
à vista das margens
a sulcar o rio

só não sei
porque te desnudas
nos olhos da folhagem
a remar as águas

 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

NOS LÁBIOS DA AREIA



                                     desenho de ÁLVARO CUNHAL


Ao entardecer
um bando de pássaros
desenhou
na palma das nossas mãos
uma vida inteira

e tudo parecia
mais azul que os céus

No seu linguajar
mais alto que o voo
duas linhas paralelas aconteceram
prolongadas paralelas
que se encontram
aonde os olhos não mentem

Ao fim da tarde
tudo é mais claro

até a noite cheia
nos lábios da areia


 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

POEMAS OU QUASE NADA



                                         foto de Eduardo Gageiro


Observo como se move
a água do meu rio

desprendida
sem mácula nem lágrimas
nua de tudo
passo a passo
militante da vida
e verdades improváveis

com todo o tempo
para sonhar
move-se lenta
esculpe caminhos
muito antes de ser mar

Um dia sonharei
um sonho seu

acordarei uma vez mais

a fazer poemas
ou quase nada


 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

AS SEARAS






É o sol que desponta
quando acendo um fósforo
e vejo como se movem as sombras
quando luz
e desfolha a noite
num sopro de lume

é o sol a raiar
que se deita no chão
despido de pétalas
a ouvir pássaros de ninguém
improvisarem hinos na folhagem

é o sol que se ateia silvestre
muito antes de ser dia

mas nem assim troco as tuas flores
por outras bandeiras
nem os teus lábios
por outros jardins

mesmo que o outro sol
adormeça de cansaço

as searas


 

sábado, 17 de agosto de 2013

LINDOS SÃO OS DESERTOS






Cansada de vicejar sardinheiras
na varanda do cais
afagar solidões
e outros desamores
desceu ao sopé da escarpa
desvendou-se
num coração de ave

reacendeu-se
no caminho do fogo
derivado ao vento
construiu um barco
sem pátria conhecida
e escreveu
nas paredes da casa

lindos são os desertos
cheios de gente

 

domingo, 11 de agosto de 2013

NO OUTRO LADO DO SILÊNCIO




Se o Verão fosse um rasto de luz
com vida por dentro
um livro aberto sem repouso
alguém teria de lhe rasgar o ventre

mas o Verão é apenas sol
a queimar o que resta do pasto

tresmalhado pastor
rebanho sem memórias
um chão que dorme
à sombra do cajado

Que importa o Verão
se o teu corpo é de tempestades
e até parece que há sempre algo
que me pertence em ti
só de pensar
a pedra sobre a pedra
o verso e o anverso

Que importa o Verão
se o sol queima
e os cães ainda não acordaram
as sombras que ladram
estateladas
no outro lado do silêncio

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

URBANO TAVARES RODRIGUES UM HOMEM INTEIRO




Urbano Tavares Rodrigues, uma bandeira de cidadania e honra.
Um Homem inteiro - alentejano, escritor e comunista.
Uma voz que o fascismo não calou nem o regime democrático revelou como merecia.
O nosso Urbano, jornalista, crítico literário, e professor catedrático - legou-nos uma vastíssima obra para gerações de leitores.
Conheci o nosso Urbano pessoalmente e com ele fico - Homem generoso, sábio e firme nos valores universais que sempre defendeu.
Permito-me recomendar o seu "Bastardo do Sol " .
Não deixemos morrer os nossos mortos.

 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

PÁSSAROS SILVESTRES





Nos subúrbios de tudo
mesmo junto aos meus olhos
desenham garatujas
no ar que se respira

em desassossego
num clamor de marés
voam de boca em boca
sem destinos

alimentam-se em pleno voo
de pequenos nadas
essenciais
para continuarem a ser pássaros

Estou a vê-los
aqui tão perto
que nem lhes posso tocar

de tão silvestres

 

quarta-feira, 31 de julho de 2013

NO CHÃO DAS ÁGUAS





Nos apeadeiros do rio inteiro
exuberantes olhos
pestanejam vírgulas
na folhagem
inventam histórias
verdadeiras
onde a luz se alevanta
na sombra
branca
dos aloendros

Por uma côdea de sonho
remam memórias
folha ante-folha
amplas claridades
no chão das águas


 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

ÁGUAS DOCES



                                Foto de AUGUSTO CABRITA - Seixal



Entram devagar na Ponta dos Corvos
por janelas escancaradas
respiram fundo nos mouchões
nidificam com as aves

por instantes quedam-se
para os barcos escutarem timbres
no brilho florido das varandas
com sardinheiras
que se despem ao espelho

no remanso
quando a gaivota mais antiga
expressa sinais silvestres
respiram lentas
afagam margens
mostram o chão
que já foi de areias
e apanhadores de seixos

na bruma das pedras
plangentes moinhos de maré
registam os ciclos vertebrados
das águas doces


 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

QUANDO TE ACHEGAS





Na minha aldeia
os pássaros não poisam
porque não há sombras
nem migalhas

tudo se decide
a céu aberto

matamos a sede
a beber água do rio
às mãos cheias
desaguamos entre pedras
infinitos
no mar
que trago nos olhos

Na minha aldeia
não há sombras
quando te achegas

 

domingo, 14 de julho de 2013

CANSADA DE SER PONTE




 
Por sobre um rio
muito aquém dos mares
cansada de pátrias amovíveis
projectas sombras
de todas as cores
 
no chão corrente das águas
despertas o voo mínimo
dos pássaros
e à vista das margens
adormeces em arco
 
cansada de ser ponte
 
 


segunda-feira, 8 de julho de 2013

DONA ARLETE







Cantadeira de histórias verdadeiras decidiu fazer uma viagem de sonho.
Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "Hotel das Dunas" .
Viajou numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho criativo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do aeroporto.
A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas  em parceria cúmplice com pescadores de lagostas, que só abriam os olhos debaixo de água.
Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna  lhes aflorava o corpo.
Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" espontâneo medrava na paisagem deserta - mas por fim choveu com abundância e o povo sereno saíu à rua hilariante. Houve quem tomasse  banho nu em cima dos telhados, a proclamar a independência.
Quando viram a senhora chegar, entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos e louvores. Nada de preces.
Anos volvidos, nunca mais choveu, mas a senhora ali ficou encantada, a despertar silêncios, a hastear memórias da chuva.
Em noites de lua cheia, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende, mas todos aplaudem.
Chamam dona Arlete, à senhora das meias pretas.
Acreditam que um dia vai de novo chover, na boca das sementes.


 

domingo, 30 de junho de 2013

NA FOLHAGEM DAS OLIVEIRAS



                               "mulher pássaro" ósseo de Graça Morais



Há tantos anos
que te não via os olhos
de tão perto os conhecer

foi preciso um pássaro
ajudar-me a fazer lume

rasgar janelas
na direcção do vento

e com um fósforo
atear fogueiras
só para os ver

lá estavam
na folhagem das oliveiras



 

sexta-feira, 28 de junho de 2013

NA ESCURIDADE DAS MARÉS VIVAS






No entardecer da praia-mar
desprendidos barcos
invadiram a rota das águas

hastearam-se em coro
num sonho navegável

Povoadas as margens
quando de novo
as palavras sangraram
na escuridade das marés vivas

um pássaro poisou
nas tuas mãos
para o levares aos lábios


 

terça-feira, 25 de junho de 2013

NOVO IMPULSO






CADA APEADEIRO
UM NOVO IMPULSO
PARA A VIAGEM
DESGOVERNO RUA JÁ

 

sábado, 22 de junho de 2013

ROUBEM-ME TUDO






Roubem-me tudo
os lápis de cores
as minhas flores preferidas

mas não me roubem
os olhos por onde vejo
um mar que não se verga

Roubem-me tudo
menos um verso

 

terça-feira, 18 de junho de 2013

PÁSSAROS LIVRES DARDEJAM NOS MASTROS





Num sopro de remos e passos
tento dar às palavras
a leveza das cinzas

silêncios expostos
derramados
na fissura das pedras
para agigantar em campânula
as paredes da casa

mas quando abro o portão
do cais
e solto os cães
para ouvir a escarpa
só os pássaros livres
não deixam de cantar

dardejam
nos mastros
para os barcos se moverem

 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

ATÉ AO INICÍO DAS MÃOS



                                                         ( Reeditado)



Já tinham colhido as flores do jardim
mas tu cumprias um caminho
desaguavas como um rio
e eu não sabia que respiravas
à flor da pele
por todos os póros

Muito antes de me ajudares
a plantar uma árvore
procuraste a margem

Tão líquida por entre os dedos
construíste um corpo uníssono
contra todos os destinos

Encontrei-te com um simples toque
numa folha de papel
a vaguear no espelho das águas

dedos nos dedos
até ao início das mãos


 

sábado, 8 de junho de 2013

CORPO DE ASAS





Queria ver uma multidão
uníssona
em cada gesto teu
e vejo

Queria que tivesses um oceano
organizado
no azul dos olhos
e tens

Queria que fosses um corpo de asas
mas insistes em chamar às coisas
apenas o nome que elas têm

 

domingo, 2 de junho de 2013

A MEMÓRIA DAS PEDRAS





Quando a noite luz
ateio-me
num abraço de limos
escrevo em branco
onde se movem
sombras de pássaros
pétalas soltas
mares desgrenhados
na cadência do relógio de pêndulo

Pelas frinchas
oiço perfeitamente
o vento que faz
o uivo dos cães
o ranger das gáveas
o despontar em surdina
de novas flores no cais

Escrevo em branco
para não ficarem sem memória
as paredes da casa

 

terça-feira, 28 de maio de 2013

LÁGRIMA SOLTA






Quando a estátua
deixou de ser estátua

eu vi

uma lágrima solta
nos olhos
da pedra


 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O PÃO BEIJADO





Regressados os barcos
às areias movediças
com mãos de linho
por um fio
tricotavas sinais
que se ajustavam
ao nosso corpo
guardavas segredos
pátrias navegáveis
e outros céus
como pedras
em voz alta
na escarpa

Regressados os barcos
repetidos
nada mais foi importante
que o pão beijado
no labirinto
dos teus lábios

 

terça-feira, 21 de maio de 2013

NÃO BASTA TER RAZÃO






Sem me fixar nas cores das lapelas
só nos olhos polícromos
parece-me que o quadro social à vista, injusto e dramático, transcende a legítima diferença de cores, convoca as pessoas para um grito
indignado e uníssono

Lá estarei
porque não basta ter razão


 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

NADA MAIS ACONTECEU





Neste belo deserto
povoado de silêncios
lábios areias e coisas lindas
quando vi os pássaros
aos molhos
num só ramo da araucária
com pausas soletradas
numa cadência exausta
de trinados e vírgulas
levantei-me da sombra
com os cães
para colocar as palavras
em ordem
nos acordes da folhagem

e nada mais aconteceu

 

terça-feira, 14 de maio de 2013

COMO TE VEJO



                                           

Ainda não aprenderam
os meus olhos

a verem-te
como és

mas apenas como te vejo