sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

NÃO MATES O NOSSO INVERNO


                                                            oleo de Dante Gabriel Rossetti


Choviam palavras a pique mas nós só ouvíamos e navegávamos o azul feito água, o epílogo de mais um ciclo de marés, quando pousaste no meu ombro preferido e assim ficámos. A haurir perfumes e outras luminosidades. Encantados.
Romeiros formigávamos a carregar montanhas como se tivéssemos asas e tínhamos, como se fosse possível aprender todos os movimentos em viagem.
Soprávamos cinzas para encandescer o lume, riscávamos no chão das areias um traço enclavinhado para nos perdermos, como se fossemos intemporais.
Partimos à pergunta de metáforas que nos emprestassem por um instante, outros caminhos.
Estávamos tão sós e distantes, mãos nas mãos, como dois estranhos apaixonados a flutuar em surdina na inconsistência das salivas quando apanhaste um seixo e o lançaste ao mar.

- Não foi para te atingir.
- Como se eu fosse o mar.

Depositávamos a pressa de um instante no frémito do primeiro beijo conquistado num berço de pedras sobre pedras, no teu andar erótico, por entre mágoas arredondadas, no tempo em que dividíamos o pão e as lágrimas.

- Andar erótico? Estava apenas a olhar um desejo quando me desprendi.
- Descobri-te devagar.

- Eu era do sol, corpo nu, areias soltas a massajar a pele, corridas pelas dunas até as águas nos receberem de braços abertos.
- Todos os deuses são imperfeitos mesmo quando nos apeadeiros do tempo andam como te vi nas areias.
- Os teus olhos vibravam e era tudo.

- Certo - mas não cales o uivo dos cães, não apagues os relâmpagos, muito menos o cantar do velho galo que só canta quando há tempestades, o mar aceso por entre os dedos, o cálice por onde ainde hoje bebemos vendavais, as sonatas do vento, o frio que purifica, os nossos farrapos de neve, as flores que resistem.

- Vamos ouvir " Quiets Nigts " ?
- Certo, mas não mates o nosso Inverno.

domingo, 24 de janeiro de 2010

PASSOS PERDIDOS




No Monte da Volta do Cajado, na tasquinha do Velho Cangalho, o senhor Estevaínha, ancião respeitado, estava à conversa com um punhado de pastores, a exercitar um pensamento que registei de passagem.

... ou se defende o cada vez pior para melhorar ou se aceita o antes assim que pior. Não concordo. Temos de encontrar uma outra saída.
Proponho um encontro de sábios inocentes, eleitos de braço no ar,
nas eiras, para reflectir àcerca da dispneia - de modo a que o país não sopre tanto para o vento, nos passos perdidos ...

- Passos perdidos? Onde ficam os passos perdidos?

- Nos passos que não deste.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

ÁGUA A CAIR NO MAR





Sempre que chegavas ao porto
construias um sonho

penetravas o olhar doce das aves
e lá ficavas exilado
numa festa de silêncios
a riscar na tela
a carvão
uma rota de afectos
a preto e branco

cumprias o mar lavrado
num farol restrito
até para os barcos
carregados de vento e velas

Quando sereníssimo
pela última vez
contigo chegaram
severas  as belas tempestades

ergueste o velho lápis de carvão
levaste-o aos lábios
e sopraste em surdina
para os mastros hasteados

sou apenas água a cair no mar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

EIS OS MEUS OLHOS


                                            Foto de AUGUSTO CABRITA     
                                           
A manhã estava a dar os primeiros passos
na bruma tresmalhada da maré
escondia o casario
quando te soltaste
de olhos acesos desgrenhados
para te encontrares
mareante do vento
à descoberta
de infinitos perfeitos

a riscar na paisagem
trajectos improváveis

a desvendar caminhos
para o mar te recolher

Fotografei-te no preciso instante
em que respiravas
a fragância de uma folha de plátano
em viagem

Quase imperceptível ouvi-te dizer
que os olhos dos fotógrafos
nunca são vistos

e eu mostrei-te o retrato
desse instante
percorrendo com os dedos
a linha sinuosa dos teus lábios

Eis os meus olhos

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

FORMOSA DUNA



Exausta
a formosa duna
movia o corpo para o mar
quando em desassossego
se libertou do vento
num grão de areia

rasgaram-se portas e janelas
mas a duna permaneceu vertebrada

talvez porque vagarosos
desertos sibilinos
ainda habitam os quadros nas paredes

exalam perfumes insofridos
por toda a casa