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A preto e branco
há indícios sítios caminhos
sombras de luz
fugazes apeadeiros
que sempre nos surpreendem
traços de ternura
a movimentar as águas
contra o vento
regressam a casa
de mãos dadas
em bando
reconstroem pontes e afectos
mas são os teus olhos
de pássaro espantado
que dedilham
espaços inteiros
até ser dia
à flor da pele
Eufrázio Filipe
Todos os dias conforme as estações
acordava à hora dos pássaros
escancarava a janela
abria os braços
dava um grito para chamar os cães
descia pedra a pedra
todos os degraus
da minha escarpa
até ao chão das marés
para hastear uma bandeira
enchia um jarro de água
sentava-me à mesa do alpendre
e começava a desenhar
palavras improváveis
Ao fundo
muito para lá da romãzeira
fremiam as águas
não sei porquê
mas fremiam
os cães latiam
e as palavras por uma nesga
espreitavam entre os dedos
como se fosse o fim da história
Neste paraíso
seduzimo-nos pela simplificação dos gestos
e assim eternos
todos os dias despertamos
de olhos fechados
Eufrázio Filipe
(2014 reconstruído)
Observo como se move
a água do meu rio
desprendida
sem mácula nem lágrimas
nua de tudo
passo a passo
olhos nos olhos
militante da vida
e verdades improváveis
com todo o tempo
para sonhar em voz alta
move-se lenta
esculpe caminhos
muito antes de ser mar
Um dia sonharei
um sonho seu
acordarei uma vez mais
a fazer poemas
ou quase nada
Eufrázio Filipe
2013
Neste porto desobrigado de fronteiras e outros céus
vem à tona a energia imperecível dos desertos
o perfil escarpado da luz
Nesta apoteose de neblinas
defino a brancura do teu corpo
de pátria movediça
como um prado de salivas
onde refulgem transfigurações de barcos
rumores de outros mares
Amo esta janela com vista para o vento
onde é possível ser eterno por um instante
povoar o silêncio errante das metáforas
e viver apaixonado no pulmão das marés
assim voejamos há tanto tempo
de um lado para o outro
na remoção do pó
a construir barcos vertebrados
traços de luz
para os peixes não se afogarem em lágrimas
assim projectados nas paredes da casa
dentro e fora do corpo
peregrinos por sobre as águas
afundámos uma ilha
mas ainda não renascemos
nas belas tempestades
voejamos há tanto tempo nas vagas
que não sabemos se é pó
o desacerto dos relógios
ou pássaros livres quase perfeitos
neste mar de pátrias repartidas
Eufrázio Filipe
( texto reconstruído )
Junto ao portão
os cães ladravam
aos outros cães
havia um portão
de faúlhas
e a noite acordava
com pássaros claros
e agora?
neste restolho de latidos
e gestos inacabados
que hei-de fazer
a tanta luz?
que hei-de fazer
quando te deitas
nas escadas do templo
a tecer fios de música
e os cães não se calam?
Eufrázio Filipe
Editora Lua de Marfim