terça-feira, 25 de outubro de 2011

UMA FLOR VERMELHA NAS PAREDES DO CAIS








Não sei quem és
mas pelos gestos vieste por bem
rasgar o vento com as mãos
a neve dos meus cabelos

e eu cansado de florestas apócrifas
das palavras em bando
comecei a plantar árvores

vi os pássaros regressarem em acordes
à luz das noites que não dormem

Na partilha de horizontes
o amor é revolucionário

voa ousa nos mastros mais altos
garatuja búzios de sons
intervem por causas
muito para lá das utopias
e se levanta resiste
ao pôr do sol

mesmo que os barcos entristecidos
estilhacem nos espelhos da água
algumas pedras com vida por dentro

Registo por um instante
o ar que nos move

pinto com a boca
uma flor vermelha
nas paredes do cais



quinta-feira, 20 de outubro de 2011

ETERNOS A PINTAR SOMBRAS



                                                                  Ana Luiza Kaminsky



Regressámos ao sítio
onde crescem silvestres buganvileas

Foi aí em recato
que rasguei o que julgava ser um poema

Lá no cimo da Arrábida
em visita guiada
aos azuis do Sado
no mais íntimo dos silêncios
observei a anatomia
dos teus gestos
quando te revelaste
quase ninfa
a invadir impossíveis
ao alcance dos dedos

Ali ficámos eternos
a pintar sombras
que se alumiam

a inventar flores amanhãs e outros relâmpagos



quinta-feira, 13 de outubro de 2011

VERDADES IMPROVÁVEIS






Inesperadamente desenhei uma flor
soltei-lhe as pétalas

cadenciadas
silvestres
musicais
neste chão de marés

Foi preciso agarrar o vento
pelas tranças
esculpir um grão de areia
para a vida despontar num sopro
e a luz de corpo inteiro
se libertar pelas fissuras da pedra

Inesperadamente
antes da chegada dos belos relâmpagos
desenhei uma flor encarnada
que se desfolhou
para resgatar memórias
e outros silêncios

Foi preciso calar os cães
convocar os pássaros

surpreender-me com a evidência
e construir de novo
verdades improváveis



 

sábado, 8 de outubro de 2011

GUIADA PELO MEU CÃO




Quando o vento em torvelinho
se escancarou nas águas
abriram-se janelas de luz
neste chão de marés
para tu passares

Pelos sinais
desobrigada sereníssima e sem quebrantos
despertaste os barcos
numa carícia de tremulinas

Eras tu senhora
guiada pelo meu cão

 


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

À PERGUNTA DE OUTROS MARES




                                                                       DELACROIX

Quando foi urgente criar um deus
as uvas ainda não estavam maduras
no corpo das videiras

Inocente subiste ao púlpito
das vinhas decepadas

improvisaste um sermão
ergueste o cálice
e a companha exausta aprendeu
que nada é perfeitamente inútil

Após as vindimas
bebemos do mesmo vinho

Foi quando enfunaste as velas
começaste a despontar relâmpagos
nos mastros mais altos

quando afloraste o chão com um beijo
partiste sem destino
por sobre as águas revolto

à pergunta de outros mares