domingo, 29 de abril de 2007

MULHER INFINITA












Ouve-se claro o ruminar das pedras

e até os passos da maré





parecem nossos





o perfume das algas

os lábios lambidos





sei que ardem

asas de insectos nas margens do rio





Vêem-se ao longe clarões ne esfera armilar

iluminarem procissões de náufragos





ouve-se um coro utópico de poetas

a dardejar ao som de alaúdes

no contorno dos mastros e vento norte





Garça branca de neblinas

mulher infinita que te insinuas





onde estás?

sábado, 28 de abril de 2007

FRÁGEIS ABSOLUTOS E TRANQUILOS












Ouso dar notícia ao mundo

dos teus seios caminhando

no baloiço das marés

das tuas crinas de vento desgrenhado

a derramarem-se grão a grão

onde obsessivas se deitam as flores





são pontos brancos dispersos

inocentes clarões de areias





Talvez o fogo imaculado

possa de novo florir no mesmo rio

para magoarmos menos este chão

onde nos deitámos por instinto

tão frágeis absolutos e tranquilos





Talvez um anjo se liberte sem ruído

das nossas sombras

e poise inútil todo branco

na preia-mar



sexta-feira, 27 de abril de 2007

SOMOS MAREANTES DO VENTO






Crescemos na nudez das rochas



crescemos e desmaiamos

conforme as marés



Vertemo-nos líquidos

em caudais de sons

ardidos no sal

no delírio da espuma

por todo o corpo



Crescemos na substância das pedras

com asas muito leves



Não somos barco de carregar velas



somos mareantes do vento

quinta-feira, 26 de abril de 2007

AS PEDRAS ESTÃO COM CIO






As pedras estão com cio



(arredondam esquinas para os lábios não se ferirem

agitam-se como lâminas no rosto da água)



As pedras estão com cio



(percorrem o fundo de si mesmo

constroem ninfas de destinos e areias)



As pedras estão com cio



(albergam rebanhos presságios e papoilas

asas maravilhosamente inúteis para a vida)



Quando as pedras estão com cio

navegam errantes pelo musgo de todos os silêncios

desprendem-se em pétalas às portas do chão

embebedam-se sem cuidados no mesmo pranto



imagem de walfran guedes

AO QUISTO CHEGOU




Admito que o estímulo patrocinado pelo governo desta república

aos funcionários públicos - para se denunciarem uns aos outros -

a entrada do pina moura para o controle da tvi - as restrições em curso

aos jornalistas,ferindo a liberdade de expressão - a programação oxidante e pacóvia dos canais televisivos,a manipulação política da

opinião pública,a lili caneças,o paulo portas,o judas,o pina manique,o alberto joão,e o túnel do marquês - admito eu - tenham determinado

a dona Anicas,do Barranco do Bebedouro,na freguesia de Colos -

a escrever uma carta ao senhor Anastácio,seu marido e emigrante na

Alemanha,com estudos não concluídos.

ASSIM -


" Anastácio

O nosso Antero,tem ido nos últimos tempos,quase todos os dias,

ao café da vila,só para ver televisão.Quando chega a casa,só fala dos bonecos que vê e já disse que tens de trazer daí uma tv cá para casa.

Quando vieres tens de lhe tirar isto da cabeça.

Ao quisto chegou.Amo-te.Anicas."


(reprodução consentida pela dona Anicas)


(imagem de Rafael Bordalo Pinheiro)

quarta-feira, 25 de abril de 2007

O SONHO COMANDA A VIDA





Os mesmos que sempre combateram o 25 de abril

e até os que sendo anti-fascistas nunca se assumiram

anti-capitalistas - os mesmos - responsabilizam abril pelas

maldades que lhe fizeram.Tartufos - alguns perfumados

nos vários patamares dos poderes - de um modo ou de outro,

tentam branquear a história junto das novas gerações,

como se um povo sem memórias conseguisse projetar amanhãs.

ABRIL E MAIO - um casamento com comunhão de bens

porque o sonho comanda a vida.

Meu amor,meu amor - o que nós passámos para aqui chegar.Continuaremos - de cravo em riste.

terça-feira, 24 de abril de 2007

A BELA CASSILDA



Caminhava no nimbo dos santos,distraido por sobre as salsas

águas atlânticas ,quando deliciado tropecei os pobres olhos num anfiteatro de estrelícias e antúrios.

Não fora o desmesurado jardim de cimento a ferir a paisagem natural,as cigarras cantariam em grupos polícromos,espontaneos,nos

sucalcos serpenteados pelas belas e verdejantes ravinas.

O tempo ameno convidava ao lazer - o mar parecia sopa - e o

alberto joão estava felizmente no estrangeiro.

Chegado ao novo aeroporto do Funchal - um hino da

engenharia portuguesa,subsidiado pelo continente e exclusivo transito

civil - não tive qualquer dificuldade na passagem pela alfandega.

No táxi que me transportou,tentei dialogar com o motorista que

era inequivocamente português.Lacónico resumiu tudo quanto tinha a dizer com uma frase lapidar que me surpreendeu pela coragem - "o alberto joão é o Funchal mas o povo é a Madeira".E mais não disse.

Num profundo silêncio de nenúfares e libelinhas,a viatura continuou o percurso enquanto eu desfrutava a paisagem e o insólito

acontecia.

Uma pulga,preta,cor da hulha,luzia ,simpática no colarinho branco do motorista - saltitava,bailava,em festa - parecia desafiar-me para

uma conversa - e assim aconteceu.

Em pose de cátedra e voz doce avançou com uma brilhante oratória.Estava no seu púlpito e eu no banco de traz.Juro que não foi

a primeira vez que ouvi uma pulga discursar.

Cruzei os braços,fixei-a nos olhos e escutei.

"Chamo-me Cassilda.Em transito pela vida - aqui pousei nesta ilha que só existe porque o magma entendeu rebentar em bolhas e os homens por conveniencia e aventuras marítimas a povoaram - as povoaram.Não sou de cá, nasci na Póvoa do Lanhoso e agora não sei se por fatalidade do destino ando de táxi com este amigo de ocasião.

Gosto de falar com os passageiros e até já tenho um sotaque indígena.Confesso-lhe que me surpreendo,neste gozo adolescente de semear palavras nos desertos,de dar nome às pedras marinhas,às sereias tresmalhadas e aos turistas que povoam esta vida de sonhos

inventados,percursos e barcos ancorados.

Sem perder a memória do ventre nem da foz dos rios - do chão que piso - dos simbolos que me alimentam a voz - caminharei duna errante até despertar nas areias o irromper dos sonhos acordados,as

minhas alvoradas.

Posso confirmar-lhe que o atlântico não nos separa.Estamos

aqui unidos ancestralmente pela seiva dos afetos,pelos pergaminhos da história,o ar que se respira,o arfar das marés.

O alberto joão é um equívoco madeirense,um paradoxo que só ecoa porque está rodeado de água por todos os lados.Seria boa ideia estimulá-lo para o continente - oferecer-lhe um lugar na Póvoa do Lanhoso.Aqui será sempre uma lebre furtiva aos zig-zag nas romarias

- um ideólogo de bairro a papaguear.

Não se admire se um dia o soba destas ilhas acabar com os filetes de espada preto e o pão de caco.Um dia expulsa-me - mas nesse dia -

caro senhor - eu não me chame Cassilda - hei-de encontrar um modo

de o ferrar".

Estava a Cassilda,bela - inocente e virgem - uma senhora - neste monólogo interessante, quando talvez por excessivo mas consentido protagonismo e entusiasmo saltou para o pescoço do motorista.

Deleitada a Cassilda olhou-me nos olhos.

Impetuoso - com o dedo polegar e o indicador da mão direita o

motorista - indiferente ao discurso da Cassilda - sacudiu-a violentamente e a conversa acabou ali - brutalmente à porta do hotel

Inconformado procurei-a no tapete e transportei-a ao colo.

Na recepção pedi uma cama de casal - e assim ficámos - para

toda a vida.

domingo, 22 de abril de 2007

PÁTRIA EM ALVORADA






Quando reivindico um sopro de música

para o teu andar de ancas vagaroso

sobre a nudez branca das dunas

é para despertar o sabor do vento

desfolhar os teus cabelos em partículas



Quando reivindico um futuro quase divino

para as aves marinhas que perfumam

as clareiras solares mais íntimas deste espaço

desejo apenas um porto seguro para o teu corpo

uma jangada efémera de cristal



Quando reivindico para ti um sonho verdadeiro

brotas do chão como um pomar de faúlhas

dás de beber a todos os pequenos rituais

como se fossemos uma lenda

em viagem sinuosa pelo tempo



És a pátria em alvorada que navego

e me desprende

o acesso intangível às brevíssimas papoilas

grão de areia esculpido com amor

na memória das palavras

pintura de Paloma González

sexta-feira, 20 de abril de 2007

TODOS OS DIAS ESTE AZUL








Todos os dias canto este mar

de sons com violinos subterrâneos

que sinto respirarem

no interior das palavras



todos os dias estilhaços de asas

sublimam-se nas rochas quentes

e nós construímo-nos

de partículas no interior do corpo



todos os dias canto este mar

de bruma

florido de punhais e algas



todos os dias este azul

até à espinha do horizonte

infinito que trago nos olhos



todos os dias a vida na noite positiva e doce

arco-íris em campânula

perfume de pássaros públicos



todos os dias esta festa

de colocar um beijo no mastro mais alto da vida

e partir

quinta-feira, 19 de abril de 2007

NA MALHADA DOS PORCOS


desenho de Mário Filipe








Lenta como o amor dos bons amantes,a madrugada despontava


quando me fiz ao caminho do Alentejo.


O céu intangível,aparentemente igual para todos,mostrava-se naquele dia - plano- longínquo,viçoso de arco íris.O sol gatinhava resplandecente por entre farrapos de nuvens frágeis,desmaiava adolescente num chão com cheiro a ervas e pássaros silvestres,numa terra de perder os olhos e a vista.


Nestas paragens,é possível ainda hoje escutar - com vagares e


lucidez - todos os sítios do silêncio,a limpidez dos sons povoados de montes e ribeiros,o timbre do voo por sobre a ondulação das searas-


-amar a sombra das azinheiras,o pó finíssimo das azinhagas,tingir a


boca com mãos cheias de amoras.Nestas paragens é possível ler


pelas janelas das casas,os olhos das pessoas.


Amo o Alentejo - até os seus defeitos.


Naquele dia estava tudo acordado,com o meu amigo Pêra Verde -


um velho ganhão ,estatura meã,entroncado,ventre generoso,rosto


vermelhão,boné às riscas com pala sobre os olhos e polegar da mão


esquerda espetada no cinto das calças de ganga - um homem simples


sábio - um coração de oiro.


Chegado à aldeia de São Mansos,onde o povo - por fé - não frequentava as missas do senhor prior,procurei a Junta de Freguesia.Em frente - monumental e paciente ali estava ela - a Mimosa.


A Mimosa,uma burra que o meu amigo destinou para me transportar,por azinhagas sem fim,até ao local do encontro.Um belo


animal.Filha de família residente,propriedade do Pêra Verde,conhecia o caminho tão bem como as suas patas.


Passei-lhe as mãos no pêlo castanho clarinho,escovado,impecável.Bonita burra.Uma risca branca,


evidente- bordava-lhe os flancos.Uma princesa.Pestanas fartas e eriçadas,uma madeixa na nuca por entre as orelhas espetadas,


olhos gulosos,ternos,meigos,infinitos.


Ao primeiro contacto mais formal e objetivo enrolou as lindas beiças,mostrou a alva cremalheira com dentes certinhos e palitados


Deslumbrado contei-lhe um segredo ao ouvido e ela deixou.


Disse-lhe que íamos comemorar o 25 de Abril.


Democrática e compreensiva - evacuou com satisfação como é da sua natureza e eu dei-lhe favas,que ruminou em festa,ensalivando com


prazer.


Assim identificados,montei-me - e partimos,amigoscompanheiros


e camaradas.


Olhei de novo o céu e pareceu-me de facto que até no Alentejo,


só aparentemente o céu era igual para todos.Concluí em pensamento,para não perturbar a Mimosa - meu deus,como não é fácil ser alentejano no Alentejo.Mesmo assim parece que ouvi a Mimosa -


nem na terra nem no céu.


De quando em vez a Mimosa troteava - mas quando decidia andar a passo,bamboleando as ancas,talvez os quadris - baloiçava-me.Só


faltava contar-me histórias de embalar.Assim fomos caminho fora e de tal modo que não resisti a esticar-me completamente por sobre o seu


pescoço.


A Mimosa - por gentileza,prazer ou consentimento,pareceu-me ter


gostado.Na verdade constatei que começou de novo a festejar.


O meu amigo Pêra Verde já me tinha esclarecido -


--Compadre - a burra é mais inteligente que uma cadela de raça.


No pó finíssimo da azinhaga lá fomos andando.Para estímulo,umas


vezes esfregava-lhe a madeixa,outras falava-lhe ao sentimento - Não


fosse o povo com militares subalternos,não fossem os democratas


em luta durante décadas,não tinhamos liberdade.Sabes Mimosa,o


desmantelamento da essencia da revolução dos cravos merece respeito e uma reflexão dos que a viveram e dos que dela beneficiaram.


A Mimosa abanava as orelhas - com o rabo sacudia as moscas.


Porque não evacuou desisti da conversa.


Por fim chegámos ao monte.Estávamos na Malhada dos Porcos


Bem disposto o anfitrião recebia os amigos com abraços e vivas ao 25 de Abril.Uma pequenina bandeira nacional flutuava no suporte de uma das orelhas do Pêra Verde.


Compadre - a Mimosa portou-se bem?Costuma ser um belo colchão de molas.Nas tetas da mãe,já eu mamei.


No terreiro,o Farrusco,um valente pata negra,inocente,estava preparado para o sacrifício.


Após os preparos - Farrusco morto,musgado e amanhado - noite fora,em festa rija - a melhor carne alentejana foi comida.Molejas,cachola,azeitonas pretas,paão fresco,borba tinto e anedotas picantes.


O tempo passava ao rubro.No auge do convívio o anfitrião entendeu falar - a sério,com voz grossa,pausada.Ergueu-se como pôde e disse -


- O mal desta república é o desemprego e a falta de segurança das pessoas.Há dias fui assaltado.Roubaram-me um tarro,um mocho,um cocho,um avio de linguiças e morcelas.


O momento tornou-se solene e o dr Galandim,conhecido na terra por Zé Milhano esclareceu o plenário


- Queridos amigos nos tempos que correm todos somos doutores e engenheiros.Nesta república tornou-se corrente qualificar a criminalidade actual de complexa,transnacional,consistentemente


monotorizada,tecnologicamente avançada,socialmente insidiosa,


acrescidamente violenta,estruturalmente actuante,economicamente poderosa e politicamente verrinosa.


Após este desaforo do dr Galandim,Pêra Verde,para manter o nível do encontro clamou de novo pelo 25 de Abril,olhou de soslaio para


os restos do Farrusco e afirmou categórico,simples e sábio,


como estivesse no parlamento nacional


- Desgraçado do animal que passa pela goela dos outros.


Apoiado por todos começamos de novo a cantar - até ao romper da aurora.


terça-feira, 17 de abril de 2007

NOS OLHOS CRISTALINOS DO DESERTO






Na estrada dos novos impérios


se te chamasse água redentora


tu não vinhas habitar os meus silêncios




se viesses incógnita e finalmente silvestre


darias às pedras o recorte humano dos sonhos




se em vez do infinito azul


eu ousasse navegar outras abstrações


se tivesses um nome fluído


e eu fosse uma pátria imprecisa


exultar-nos-íamos num breve instante


como em sussurro as papoilas


fazem aos sopros matinais




Na estrada dos novos impérios


existe um fragmentado brilho


nos olhos cristalinos do deserto


correm galgos os deuses e o pó


para o templo secular das oliveiras




mas eu não vou





segunda-feira, 16 de abril de 2007

ETERNO POR UM INSTANTE



Neste porto desobrigado de fronteiras
e outros céus
vem à tona a energia imperecível
dos desertos
o perfil escarpado da luz
fragmentos de círculo

Nesta apoteose de neblinas
defino a brancura do teu corpo
de pátria movediça
como um prado onde refulgem
transfigurações de barcos
rumores de outros mares


Amo esta janela com vista para o vento
onde é possível ser eterno
por um instante
povoar o silêncio errante das metáforas
e viver apaixonado
no pulmão das marés


desenho de Almada Negreiros

PASSOS PERDIDOS?



Nos passos perdidos do parlamento nacional,mais de mil mãos,

abertas,de ferro,perfiladas,da coleção Berardo,parecem recordar

aos deputados da nação que todo o poder é efémero.

Lá fora,de punhos erguidos,em manifestação por direitos humanos e constitucionais,comandados pelo sonho - os excluidos - com o desejo de um dia os ver a espreitar pelas janelas.

São poucos os que sobem ao povo.



domingo, 15 de abril de 2007

LIBERDADE CONDICIONADA?



O dr. Santos Silva ministro desta república quer os jornalistas na
ordem e a liberdade de expressão na gaveta,pelo que se prepara para
impor "democráticamente" um novo estatuto profissional à comunicação social,reabilitando memórias combatidas nos tempos da ditadura.
Talvez por isso - lembrei-me de saudar a importancia da Associação para o estudo e Protecção do Gado Asinino,em Duas Igrejas,terras de Miranda do Douro - um espaço aberto,talvez um dia alargado para ministros estrábicos e saltitantes.
Com o devido respeito pelos animais.

sábado, 14 de abril de 2007

UM CORPO DE ASAS



Queria ver uma multidão

uníssona

em cada gesto teu

e vejo

Queria que tivesses um oceano

organizado

no azul dos olhos

e tens

Queria que fosses um corpo de asas

mas insistes em chamar às coisas

apenas o nome que elas têm

quarta-feira, 11 de abril de 2007

O poder não dorme

IRMÃOS - O NOSSO PRIMEIRO MINISTRO ACABA DE DIZER EM SÍNTESE -
DORMI DESCANÇADOS MEUS FILHOS.
IRMÃOS- AFINAL OS PIRATAS SOMOS NÓS.

Omeu cão de barro está num pranto.Ele sabe que não admito injustiças.Neste caso vou ponderar.Será que o bicho tem razão?

Quanto a mim só me apetece dançar ao sabor do jaze e fazer ninhos
por debaixo das vossas orelhas,agitar o ambiguo cantarolar das aves e partilhar convosco a dimensão o orgasmo o sustento.

Os animais tambem são filhos de deus


Hoje
o meu cão de barro
bem humorado
acordou com os pássaros
e logo me recordou
que não vivemos num país
mas num canil.
Sem pestanejar repreendi-o.
Discordei do timbre
da sua voz.
Dei-lhe um osso

e fiquei a roer-me por dentro

terça-feira, 10 de abril de 2007

SEIXAL-Que dia é hoje?




Hoje acordei a fazer versos ou quase nada.Foi assim que decidi escancarar as janelas de todas as varandas - só para te olhar.
Lá estavas - na tremulina da preia-mar,sussurrante,nua,à minha espera.
Eu disse nua mas na verdade estavas quase nua - porque no corpo da
água ainda vi como num espelho,o casario a piscar os olhos nas margens
e senti uma brisa fresca a rumorejar no velame não recolhido dos botes,dos varinos e das fragatas.
Neste dia e a esta hora,em todas as varandas inocentes eu habitava o teu corpo lindo,casava gerações de culturas,credos e tradições - sonhava acordes na respiração das marés e ouvia perfeitamente nos mouchões o
piar afrodisíaco das aves em apelos de glória à nidificação.
Hoje acordei a fazer versos ou quase nada - escancarei as janelas de
todas as varandas e lá estavas tu,quase nua,ululante no mais íntimo de todas as coisas sofridas e amadas - à minha espera.
Os meus pobres olhos nos teus,os teus dedos por entre os meus.Os
lábios marcados na pele quando te penso.
Neste dia e a esta hora ecoavam em surdina o vociferar dos corvos,
o borbulhar lânguido das ostras,o timbre das filarmónicas e as cirenes
trepidantes das fábricas.
Era o teu corpo fertilíssimo e disponível a pulsar - do ventre até à foz-
um porto de abrigo para naufragos de todas as paragens,um espaço de
resistência para autóctones,como se a vida fosse um grão de areia rodeado de sonhos por todos os lados,como se a vida não fosse um grão de areia rodeado de sonhos por todos os lados.
Seja como for - de todas as varandas estreitas,de olhos rasgados,enga-
lanadas de ferro forjado,debruçadas montras de vestuário e sardinheiras
perfumadas de povo,palco de tagarelas,silêncios e cumplicidades,
partilhei o brado dos pescadores no coaxar dos passos enlameados do
"cerco"as lutas operárias,o silvo do do velho comboio,o cantar dos sinos.
De todas as varandas partilhei a marcha das canas,o cantarolar dos chafarizes,o ranger das engrenagens dos moinhos de maré,os arreiais,os bailes populares,a imponência dos coretos,as cavalhadas,o cais da Mundet,o trotear das bestas a puxar carroças ou a perseguirem democratas.
Escancarei as janelas de todas as varandas e lá estavas tu,um pulmão que respira,um chão de barcos,um ninho de azinhagas,páteos e ruelas tortuosas,toalhas de renda a colherem o perfume das algas,a ternura
genuina dos amantes que Raul Brandão aflorou,Manuel Rebelo exaltou
e Eduardo Palaio retrata nas aguarelas.
Reconheço-te meu amor nos contrastes ingénuos e talvez por isso até
goste dos teus defeitos.
Contigo tanto caminho por sobre as águas como no pó de tantos caminhos bordejados de amoras silvestres.Contigo tanto viajo por entre pomares e vinhedos como nas lendas de Paulo da Gama.Contigo minha terra de carne e osso se fazem os poemas e até as pedras têm nome.Con-
tigo apetece cantar,respirar por guelras.
Hoje acordei a fazer versos ou quase nada e foi assim com tantos sonhos acordados que registei dois momentos :
O primeiro

Recordas-te que viajámos numa pequena jangada,mal ageitada mas
ternamente construída com restos de troncos dos estaleiros navais?
Era preia-mar e nós remámos,remámos.Nesse dia fiz amor contigo
na varanda da minha tia-avó que se projetava nas águas da baía.
Ainda hoje transportamos esta incerteza - será que ela nos viu?

O segundo

Bojuda nas ancas,bamboleavas-te na bicicleta,pela azinhaga fora
até à casa da lenha,onde te recolhi.Apaixonados sentámo-nos nas pequenas cadeiras alentejanas e ardemos à lareira - toda a noite,até às
cinzas - ao sabor do jaze.

Pensando de outro modo acho que tudo isto vem a propósito do instante que de quando em vez nos desperta - isto é, uma vontade irresistível de parar para ver como se anda ou se quisermos a prática de uma ideia comum - fechar os olhos para ver melhor,escancarar as janelas de todas as varandas e gritar
SEIXAL -que dia é hoje?

segunda-feira, 9 de abril de 2007

BOCAGE - O SADINO



Ainda a propósito da novela de Sócrates aluno apetece-me recordar Bocage sempre presente nos grandes e pequenos momentos nacionais.

"O traque que esta senhora deu não foi ela - fui eu."

Obviamente - sem gaguejar.


SOCRATES?


Tanto,demasiado se tem falado no caso Sócrates e da sua licenciatura - nunca se tendo admitido por hipótese académica que o caso tenha sido préviamente estudado pelos seus altos comandos - para que Sócrates,uma vez mais brilhasse e as grandes questões nacionais,uma vez mais fossem distraídos.
Querem atacar a pessoa de Sócrates ou o primeiro ministro?Querem atacar Sócrates ou a sua política?
O ministro já fez o que estava previsto.A Caixa Geral de Depositos
tambem.Sócrates também.Querem mais?
Plantai árvores crianças.

domingo, 8 de abril de 2007

Urge regionalizar o país


Todos os poderes centrais querem concentrar poderes - o máximo de poderes.É uma tentação desgraçada que passa a proveito,à margem dos interesses gerais.
Quando os poderes centrais não tomam a iniciativa para se descentralizar,terá de ser a opinião pública a organizar-se independente-
mente das lapelas politico-partidárias.
Na verdade - o poder só é poder se exercido,mas para ser democrático tem de descentralizar-se.
Não sendo a regionalização do país,por si só,a varinha mágica para
todas as maleitas do regime,é no entanto um imperativo nacional que
criará novas condições de participação e de decisão - será um instrumento de soberania popular para a melhoria da qualidade da
nossa democracia e para a gestão mais equilibrada do ordenamento
do território.
Urge criar um poder regional que seja charneira entre o poder local
e o poder central,à semelhança das práticas europeias.Urge substituir
as estruturas actuais de coordenação regional,com funcionários políticos
nomeados ciclicamente pelos poderes centrais,por eleitos democraticamente pelas populações.
Adiar a regionalização do país não será apenas estrabismo politico
,será colaboracionismo vesgo com os arautos mais retrógrados do regime democrático.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

CÃO DE BARRO NAMORA GATA DE PELUCHE


Alguém apagou as luzes da sala que passou a brilhar
nos contornos dos objectos com a sensualidade da arquitectura
das sombras.

A sala assim despida de artifícios passou num ápice
a respirar por todos os poros, a crepitar por via do azinho
que dava alma à generosa lareira.

Num instante o clique do interruptor devolveu ao espaço
a dimensão da noite com lua cheia
o cântico dos animais com cio
o veludo poético das palavras de Eugénio de Andrade.

Na aparelhagem Daniela Mercury gingava o corpo e a voz
ao ritmo do samba, enquanto o Dik se deliciava pensativo
no último entrecosto do jantar.
Adivinhava-se o seu pensamento:
“-Se há-de ir para os cães.”
O Dik naturalmente surpreendido com a nova paisagem
de luzes e sombras, largou o osso, espevitou-se no sofá
pestanejou os olhos de esmeralda chinesa e viu aproximar-se
da lareira, patinhas erguidas e ternos miaus
a sua gata de peluche.

Docemente abandonou-se no sofá, lambeu os lábios, e assistiu
pela primeira vez a um bailado sedutor.
A gata tinha a dança no corpo.
Por vezes a vida surpreende-nos
e a capacidade de nos surpreendermos faz do barro vida
e da vida uma constelação de sonhos.
Adivinho que foi isto que o Dik pensou
enquanto punha mais uma acha na fogueira.

A gata – um belo exemplar escultural, distribuía afectos
estimulava afectos, tinha prazer em dar prazer.
Falava pelo movimento.

De costas para as claridades exibia-se ao ritmo
da música e do ondulado das chamas.
Olhos postos no Dik, despia-se
despia-se despia-se até ficar em pêlo.
Na verdade há dias em que um cão não é de barro.

O Dik ainda se recordou de um verso que o dono escreveu
no verão passado - “ há quem consiga agarrar a água em movimento.”

Assim fez a gata de peluche.
Os dois em uníssono e de corpos transpirados
ondularam até às cinzas.
Exaustos e doces aninharam-se, dormiram profundamente.

Abraçados, de bocas coladas. Eternos.

terça-feira, 3 de abril de 2007

FUMAR?SÓ POR RECEITA MÉDICA


Nesta chamada sociedade global,vigiada e racista,a hipocrisia e o fanatismo são exibidos como principios impolutos pelas tribos dominantes.
De quando em vez a hierarquia elege um alvo para limpar as armas
e desviar atenções.O bom povo alinha e prepara-se para fumar às escondidas.
Admito que os impérios do tabaco irão prosperar.Os cofres do estado tambem.
Deixar de fumar?Obviamente,mas com a mesma liberdade do primeiro cigarro que fumei.Porquê?Porque quando fumo um cigarro
não gosto de ser incomodado por um não fumador.O contrário tambem é verdadeiro.
Só não admito que as tribos dominantes legislem a fingir de castos
e estrábicos.
Será que um dia só poderemos fumar após receita médica?

Oremos.