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A letargia dos barcos
surpreende todos os silêncios
neste cais
onde nada é inútil
mas tudo é tão frágil
e nada mais acontece
Neste cais os pássaros
em desassossego
banham-se à sombra dos mastros
espantam-se de tanto se olharem
na concha das nossas mãos
e nada mais acontece
até o cais ser um cristal
mais forte que o seu brilho
golpe de asas e seara
contra todos os destinos
Nesse dia seremos
no espelho da água
mais livres que os pássaros
Colho-te quando tudo
está tão pardo no cais
Colho-te nos lábios a fragrância
de braços abertos
como se nestas rotas a maresia
escrita à mão
fosse metáfora
arremesso de palavras
e sons
Colho-te as velas recolhidas
à pergunta de um sopro
barcos ancorados
a gatinhar nos mastros
até o grito se organizar
em coro
e as águas correrem livres
sem murais
Estávamos no fresco trinado da Primavera
quando uma ave desconhecida
subiu mais alto
que o mastro das bandeiras
e logo hoje choveu
uma lágrima dos teus olhos
Estávamos no trinado da Primavera
o vento quase não se movia
mas nós carregávamos
a serra às costas
por esses mares desnavegados
a decifrar azuis
e outros destinos
Nós sabíamos que não existem destinos
e as flores não se oferecem
conquistam-se a partir do chão
até as pétalas se desfolharem
Só não sabíamos
porque choveu uma lágrima
dos teus olhos
Publicado no meu "caçador de relâmpagos"
Conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua cheia.
De repente, um vulto na minha rota. Não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor.
Saí do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano, lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho:
- É pá, mataste um cão sem dono.
A lua cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para dentro do carro.
Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz.
Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. O funeral foi marcado para a meia noite.
Todos compareceram.
Solidários, quatro amigos mais corajosos ofereceram-se para cavar a sepultura, num canto da horta, onde espontâneas medravam hortelãs.
Todos reunidos no silêncio.
Um uivo comovido despoletou um choro colectivo.
Só o Dique não chorou. Trazia na boca uma papoila que largou
em cima da sepultura.
Quando passa um sopro de lume
no espanto das marés
pétala a pétala
se desfolham primaveras
neste chão
mas nunca se perde uma flor
em carne viva
o olhar terno das pedras
abruptas
na voz silvestre da escarpa
Quando passa uma nesga de sol
puxada a remos
na expressão humana
de um barco
respiram à tona outros voos
devagar
te dou um beijo
publicado no meu "Que fizeste das nossas flores"
Nos olhos um mar infinito de palavras soltas
faúlhas e rumores de vento
onde quedos se agitam por dentro
barcos ancorados
Nas velas recolhidas um perfume de algas
onde convergem todas as pátrias movediças
cardumes nos destroços das bandeiras
Estes são os olhos que me olham
nos espelhos da água
Os meus permanecem hasteados nos mastros
a despir horizontes desgrenhados
no grito das marés