sábado, 27 de dezembro de 2014
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
DEZEMBRANDO
À míngua de pássaros
subimos a pulso
a nossa escarpa preferida
só para ouvir
íntegro o vento inteiro
sem mãos nos ouvidos
nesta desordem organizada
disse-te
és a minha pátria
aquilo que não sei
À míngua de pássaros
nesta ilha sublimada
de sonhos e neblinas
dezembrando
se tivéssemos um barco
quase nada seria inútil
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
sábado, 29 de novembro de 2014
NO PULMÃO DAS MARÉS
republicado
Neste porto desobrigado de fronteiras
e outros céus
vem à tona a energia imperecível
dos desertos
o perfil escarpado da luz
fragmentos de círculo
Nesta apoteose de neblinas
defino a brancura do teu corpo
de pátria movediça
como um prado onde refulgem
transfigurações de barcos
rumores de outros mares
Amo esta janela com vista para o vento
onde é possível ser eterno
por um instante
povoar o silêncio errante das metáforas
e viver apaixonado
no pulmão das marés
domingo, 23 de novembro de 2014
RESISTE O MEU CÃO DE BARRO
A minha escarpa tem uma janela para o vento entrar de preferência com relâmpagos.
Quando troveja inconformado abro a porta que dá para o alpendre e os "Serra da Estrêla" vertiginosos avançam amedrontados.
Aninham-se nos tapetes da sala.
De alma lavada e farto pêlo, entram casa adentro, sacodem-se, vivificam as paredes onde me acompanham um óleo do Kiki Lima, outro do Albino Moura, pratos alentejanos, uma falua em casca de ostra, uma estatueta da Papua Nova Guiné, o relógio de pêndulo, um poema do Eugénio de Andrade.
Quando troveja e os céus se derramam, a minha escarpa alumia-se. Os "Serra da Estrêla" deitam-se e ressonam nos tapetes até eu pegar no sono e acordar a fazer poemas ou quase nada. Lá fora, imperturbável (e)terno a dizer coisas improváveis - o meu cão de barro - sem medos, resiste em vigília ao tempo que faz.
terça-feira, 18 de novembro de 2014
DONA ARLETE A SANTA DAS MEIAS PRETAS
texto reconstruído
Cantadeira de histórias inventadas decidiu fazer uma viagem de sonho, à semelhança dos pássaros.
Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "hotel das dunas".
Viajou por sobre mares e relâmpagos numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho escravo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do chamado aeroporto. As cabras fugiam e a avioneta aterrava.
A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas e cúmplices dos pescadores de lagostas que só abriam os olhos no chão das águas.
Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna lhes aflorava o corpo.
Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" que espontâneo medrava a espaços na paisagem deserta - mas à chegada da senhora choveu com abundância e o povo generoso saíu à rua hilariante.
Houve quem tomasse banho nu em cima dos telhados a proclamar a independência da ilha.
Quando a senhora chegou entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos, louvores, preces e andores.
Anos volvidos a senhora ali ficou encantada a despertar silêncios repetidos, a hastear a voz nas memórias da chuva.
Em noites de lua cheia, cantadeira e santa, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende mas todos aplaudem.
Chamam Dona Arlete à senhora das meias pretas. Acreditam que vai de novo chover na boca das sementes - e assim vivem pobres felizes de joelhos nas movediças areias. Até ser madrugada.
sábado, 15 de novembro de 2014
NO CORAÇÃO DAS PEDRAS HÁ PÁSSAROS EM RISTE
publicado no "Presos a um sopro de vento"
POÉTICA EDIÇÕES
Quando chegaste
sangravas de uma asa
menina dos meus olhos
pátria efémera
a rasgar palavras
despida de tudo
regressaste ao concerto
dos meus silêncios preferidos
vestiste a cal de branco
num véu de noiva
e escreveste uma frase
trinada nas paredes da casa
que ainda hoje conservo
no coração das pedras
há pássaros em riste
sábado, 8 de novembro de 2014
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
domingo, 26 de outubro de 2014
DESPERTAMOS DE OLHOS FECHADOS
Todos os dias conforme as estações
acordava à hora dos pássaros
escancarava a janela
abria os braços
dava um grito para chamar os cães
descia pedra a pedra
todos os degraus
até ao chão das marés
para hastear uma bandeira
enchia um jarro de água
sentava-me na mesa do alpendre
e começava a desenhar
palavras improváveis
Ao fundo
muito para lá da romãzeira
fremiam as águas
não sei porquê
mas fremiam
os cães latiam
e as palavras por uma nesga
espreitavam entre os dedos
como se fosse o fim da história
num paraíso inventado
Todos os dias despertamos
de olhos fechados
terça-feira, 21 de outubro de 2014
DESFOLHADA
publicado no meu Chão de claridades
Soltei um pássaro
que me pousou no texto
mas não lhe evitei
o menear das pétalas
só mais tarde
tão tarde
que já adormeciam as palavras
ouvi espargir irrepreensíveis
metáforas
na folha de papel
soltei uma rosa
que se exala
quando a sopro para voar
mas sempre regressa
desfolhada
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
sábado, 4 de outubro de 2014
PRESOS A UM SOPRO DE VENTO
a publicar em breve na Poética editora
Na véspera dos relâmpagos
os pássaros são eternos
conforme os apeadeiros
renascem ao som da folhagem
oferecem o corpo inteiro
e o desejo
pestanejam vírgulas
lábios remos e passos
numa cadência de asas
Na véspera dos relâmpagos
o mar organiza outros azuis
utopias em movimento
amplas claridades
sem âncoras nem limites
como nós
presos a um sopro de vento
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
O CAOS DO SODRÉ
Publicado no meu Caçador de Relâmpagos
Tinha pássaros de esmeralda nos amendoados olhos vivos, The Four Seasons de Vivaldi, quando as mãos esguias se expressavam por gestos e nós lhe respirávamos o sorriso franco nos contornos do rosto.
Exibia um sinal lindo no lado esquerdo dos lábios sensuais e uma longa madeixa de cabelo, meticulosamente entrançado, cor da hulha, pendia-lhe no decote generoso, por entre os seios, alongava-lhe o corpo balzaquiano.
Fluente de palavras, não disfarçava o sotaque do leste latino, nem a simplicidade com que se vestem as pessoas cultas.
Estávamos na esplanada da centenária Brasileira do Chiado, afagados pela estátua a Fernando Pessoa.
- Como se chama?
- Ofélia.
- Ofélia?
- Sim, Ofélia Dumitriu. Sou romena, nascida em Malaia, uma aldeia distante de Bucareste. Sou professora de História de Arte, mas ainda não encontrei emprego neste país.
- Eu sou apicultor.
- Apicultor?
- Sim, apascento abelhas.
Que faz a Ofélia desempregada?
- Tal como Fernando Pessoa, "se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus "
- Parece conhecer bem o nosso chão.
- Faço de guia, sonho por conta própria e muito risco. Arrisco.
Foi assim que viajámos com a Ofélia. Deixámos a Brasileira do Chiado e percorremos a Rua do Alecrim, uma janela de ar fresco, rasgada em declive para o Tejo.
A Ofélia lá nos foi descrevendo com detalhes a história da estátua - hoje uma réplica - de Eça de Queirós, o traçado da rua desde o terramoto de 1755, o edifício do Siza Vieira, os alfarrabistas - até desaguarmos na Praça do Duque da Terceira, uma das zonas mais chiques da cidade oitocentista.
- Ali ficava o Grand Hotel Central, que Júlio Verne frequentou e onde parte de Os Maias foram inspirados.
A tarde já se tinha esfumado. O sótão do mundo estava coberto de nuvens. Soprava uma brisa fria que nos cortava a pele de mansinho. O rio tossia e nós recolhemos a um bar irlandês.
- Os senhores são bem-vindos, mas a Ofélia não pode entrar.
- Desculpe, mas esta senhora é nossa convidada. Por que lhe está a vedar a entrada?
- A Ofélia sabe que tem muitos pássaros nos olhos.
Não entrámos. Sentámo-nos na esplanada. Tomámos um chá de São Roberto.
Em silêncio, a Ofélia ouviu-me dizer o texto de Eça no qual se inspirou o escultor Teixeira Lopes.
" sobre a nudez da verdade, o manto diáfano da fantasia"
Entretanto começou a chover. Uma goteira impertinente que se esgueirou do toldo, derramou-se no texto. As palavras - uma a uma - caíram no chão que ficou azul, todo azul, neste caos do Sodré
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
NÃO HÁ ESPAÇO PARA CANTAR
Entre oliveiras buganvílias
e latidos de cães
resiste um poço
a céus aberto
onde temos por hábito
falar baixinho
para não acordar silêncios
No fundo do poço
há um espelho vertiginoso
luz que assoma
aos nossos olhos escarpados
Quando chove a cântaros
tudo fica mais claro
a fluir
na solidão das estrelas
No fundo do poço
não há espaço para cantar
mas tu cantas
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
UMA FOLHA À FLOR DA PELE
Pobres rios
tão rasos
que alimentam mares salgados
na esperança de serem eternos
tão cegos os seus olhos
na vertigem da escarpa
onde quase tudo converge
num ponto
inscrito na pedra
que se não verga
Pobres rios
que alimentam mares salgados
escrevem nas margens
e desaguam
estribilhos loas cantes lonjuras
a curta metragem
de uma folha
em pleno voo
desprendida
à flor da pele
domingo, 14 de setembro de 2014
QUE FIZESTE DAS NOSSAS FLORES?
2008
As árvores viajam
na sombra do verde
um sussurro de folhas
mas tu foges dos ramos
amanheces tão distante
que nem os meus olhos
descobrem os teus gestos
as árvores viajam
onde acontece a cor do fruto
no chão
e os pássaros sem amos
deixam que a sombra se rebente
meu povo
que fizeste das nossas flores
terça-feira, 9 de setembro de 2014
APENAS UM TRAÇO
No rasto de um risco
em pleno voo
com asas de vento
as pétalas
no chão
que os cães não pisam
no rasto de um risco
deixei no papel a caligrafia
de uma pestana
em forma de vírgula
um gesto de lágrima cansada
no rasto de um risco
em pleno voo
com asas de vento
a carvão
pássaros
cães
sombras amovíveis
no entardecer das paredes da casa
marés ao rubro
nas fogueiras e nos mastros
que fiz eu?
nada
apenas um traço.
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
ENCANTATÓRIAS PEQUENAS PÁTRIAS
Linda plumagem quase hulha
olhos de mel
graciosa no salto
à noite uma centelha no poleiro
inverosímil aos arrufos
íntegra a cacarejar
depositava o mais branco ovo na palha
Aparente mente feliz
morreu hoje
a minha galinha preta
e eu só podia fazer o que fiz
ofereci-lhe palavras
encantatórias pequenas pátrias
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
sábado, 9 de agosto de 2014
EM DECLIVE POR SOBRE AS ÁGUAS
Na bela escarpa
à mesa do alpendre
quase tudo se vê
de olhos fechados
o dorso da serra
onde nidificam sonhos
um jardim de videiras
cães a ladrarem
quando a neblina invade o castelo
sombras amovíveis de pássaros
oliveiras
o perfume silvestre das hortelãs
o pó da azinhaga
um certo vento disponível para os lábios
uma nesga de mar
a cantarolar silvos de barcos
Neste deserto flamejante
povoado nos apeadeiros
esculpido em grãos de areia
as palavras amadas
tentam implodir
para acordar silêncios
com vida por dentro
Na bela escarpa
contra todos os destinos
a lavrar pedras com as mãos
em declive por sobre as águas
voeja
na mesa do alpendre
uma folha de papel
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
O PÓ DO TEMPO
Inesperadamente acordei
coloquei o teu travesseiro no meu travesseiro
liguei o rádio
fumei um cigarro
abri a porta do relógio de pêndulo
para dar corda ao tempo
e ver-te passar
soprei os ponteiros e voaste
tão longe
que só um dia te encontrei
na areia da praia
a olhar um barco
que nunca existiu
a não ser quando um pássaro distraído
em confluência de rotas
transportou o vento nas asas
e pousou em silêncio
no teu olhar
lembras-te?
lembro
na rebentação das marés
onde se enleiam sargaços
começámos a soletrar pelos dedos
palavras excessivas belas imensas
a erguer das cinzas
o pó do tempo
quinta-feira, 31 de julho de 2014
NÃO " É LINDA A PUTA DESTA VIDA"
Até hoje em escassos dias 1400 civis palestinianos mortos, novas compras de armamento aos EUA, 50 mortos israelitas
mas esta imagem bestial é mais que uma guerra
Não "é linda a puta desta vida"
mas vamos continuar a plantar flores
nesta desordem de cores nos jardins
a desgrenhar o vento
a rasgar caminhos contra a orgia do sangue
para não "morrermos de sede em frente do mar"
sábado, 26 de julho de 2014
HOJE AS PALAVRAS NÃO ESTAVAM INTACTAS
Luís Filipe Garcez professor de musica clássica com a Ana Filipe sua filha
Quando abraçavas a guitarra
tinhas nas mãos
um sol de mãos cheias
os pássaros desciam à terra
em pleno voo
e o silêncio calava-se
para ouvir improvisos
trinados de outras vozes
dilatavas as veias
como um rio sem margens
para o sangue correr
até à fímbria do mar
mas hoje as palavras
os sons e os pássaros
não estavam intactos
faltava-lhes o teu olhar
domingo, 20 de julho de 2014
segunda-feira, 14 de julho de 2014
HOJE PLANTEI UMA ROSA
Inacessível vista do alto
a minha escarpa preferida
é fácil de explicar
vertiginosa sobe ao chão
num perfeito equilíbrio
assimétrico
sem mácula nem poalhas
ali fica breves infinitos
até o mar desgrenhado
vicejar
velas remos e passos
nos mastros mais altos
Hoje plantei
uma Rosa
na minha escarpa
e nada mais aconteceu
quarta-feira, 9 de julho de 2014
sexta-feira, 4 de julho de 2014
terça-feira, 1 de julho de 2014
quarta-feira, 25 de junho de 2014
sexta-feira, 20 de junho de 2014
O FULGOR DO PORVIR
Nem o mar sabia
entardecer
numa folha de papel
esculpir em síntese
a tua nudez
nem o mar sabia responder
a tanto azul
nem eu sabia que tardavas
mas chegavas
chegavas chegavas
nunca mais acabavas de chegar
a tempo de plantar
uma árvore
que se desnudasse
folha a folha
nem tu sabias senhora
neste deserto
a sede do entardecer
o fulgor do porvir
sábado, 14 de junho de 2014
SILENTE O CHÃO SE ALEVANTA
Quando eras um rio
a rasgar caminhos vertiginosos
e as escarpas seguiam
imaculadas os teus olhos
os peixes ficavam encarnados
na tua boca
nidificavam entre margens
enleados
quando a sombra das pontes
nem sequer eram fronteiras
e eu disse que os rios viajam
do ventre até à foz
tu sabias que só o mar
os acolhe
quando eras um rio
eu dava os primeiros passos
na água
a desconstruir muros
silente o chão
se alevanta
sábado, 7 de junho de 2014
À MÍNGUA DE RELÂMPAGOS
Efémera crisálida
despontou silvestre
na mesa do alpendre
onde nidificam os sonhos
quando um passageiro arfar
se desnudou
à vista dos aloendros
flor vertebrada
no mais alto mastro
das marés
soletrou afagos no jardim
à míngua de relâmpagos
e eu só podia fazer o que fiz
inscrever-te para sempre
numa folha de papel
segunda-feira, 2 de junho de 2014
terça-feira, 27 de maio de 2014
SÓ NOS FALTAVA SEDUZIR OS PÁSSAROS
A remoinhar
no mais íntimo da pele
tínhamos quase tudo
tão perto das mãos
que nem lhe podíamos tocar
amanhãs
e outros destinos
Só nos faltava
subir às pedras deste chão
impedir nas mansas águas
que o sonho rebentasse
onde as estrelas vicejam
sem quebrantos
Tínhamos quase tudo
até um pomar de faúlhas
para alumiar o fulgor do canto
Só nos faltava
seduzir os pássaros
domingo, 25 de maio de 2014
terça-feira, 20 de maio de 2014
quinta-feira, 15 de maio de 2014
sábado, 10 de maio de 2014
MARINHAS VALENTES
"Caçador de relâmpagos" 2010
No chão dos marnotos caminhamos azinhagas, comemos amoras, tropeçamos memórias, pedras, pérolas e pó - para compreendermos melhor as palavras de carne e osso até as metáforas se ajoelharem como pequenos deuses inúteis, à nossa mesa.
Só depois provamos o sal das marinhas. A safra.
O tempo dos homens que chafurdam no moliço.
A distância que nos separa e atrai, a pele esfarrapada para resistir aos Invernos, mastros de flores salgadas nos olhos distantes a gatinharem no tempo, até ao aborrecimento final.
Após a "bobadela" a marinha começa a parir uma massa branca, que envaidece os homens quando se olham nas sombras curvas projectadas nas águas.
O sal aparece ao ar livre. Reunido em montículos junto aos tabuleiros das marinhas e aí fica a escorrer lágrimas .
Depois é o marnoto que enche canastras transportadas à cabeça dos moços Depois é sempre assim. O mesmo peso até estar construído o grande cone branco.
Antes de regressarmos às azinhagas e comermos o resto das amoras, os homens reúnem-se ao cair da noite, para festejar.
Enquanto se embebedam , cantam com a ajuda de uma gaita de beiços. Há sempre um que vomita e volta a cantar.
São os rudes corações de oiro, meninos triturados, construtores de marinhas valentes. São os que transformam água em pão, enquanto à nossa mesa se ajoelham as metáforas.
segunda-feira, 5 de maio de 2014
A DUNA SOU EU
" Caçador de relâmpagos " (2010)
Enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.
- o cão ou o velho?
Lentos , trôpegos, com os pés a tracejarem os caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias.
O cão - mais velho que o dono - era o guia, a sua bengala de cego.
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna, abrupta sobre as águas, as aves marinhas mergulhavam a pique , esbracejavam só para os salpicar. Lá iam, serenos, livres, sem palavras - imensos.
No ar, o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de maresias.
Chegados ao topo da montanha era sempre assim - o velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos.
Sentados - respiravam infinitos - o perfume das algas - adormeciam no tempo.
Ao longe, muito ao longe, alguém de um barco bramou :
- fuja, a duna vai desmoronar-se.
Imperturbável, respondeu baixinho para não acordar o cão :
- A duna sou eu.
segunda-feira, 28 de abril de 2014
NA LINGUAGEM DOS ESPELHOS
Silvestre a lamber o leito
por onde corre
num acorde de timbres
sereníssimo o rio
atravessou
passo a passo
a sombra das pontes
desaguou sem amos
no chão das marés
barco desgrenhado
quase perfeito
a lapidar as águas
Passo a passo
demorou-se por um fio
a subir às gáveas
precipitou-se
do último verso
do seu poema
mas resiste
olhos abertos
na linguagem dos espelhos
terça-feira, 22 de abril de 2014
ATÉ ARDER DE NOVO A MADRUGADA
publicado no "A linguagem dos espelhos" 1982
Arde a madrugada na incandescência
dos nossos lábios
tangem cordas de oiro e prata
os nossos dedos
transportamos anéis de fogo
no interior dos corpos
labaredas cingidas
nas línguas
No regresso é o caminho que nos trás
exaustos de muitos pesos
rangem os corpos
mas dos lábios
saltam faúlhas que nos alimentam
até arder de novo a madrugada
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