Picasso - rapaz a guardar cavaloUma saraivada de granizo caía abrupto nas nossas vidas, queimava-nos a alma até aos ossos. Nunca mais chovia água de beber.
Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão. O mar vadiava nas frinchas das falésias e os barcos ancorados, aguardavam nos mastros outros ventos.
Foi então que os galos cantaram. Mais cedo. Inutilmente pois ninguém dormia.
Havia uma certa efervescência no ar. Um respirar ofegante.
Nas ruas - as esquinas dos prédios voaram - para os cegos abrirem os olhos. Nas árvores - o Inverno colaborava. Nem uma folha para esconder o arrepio dos pássaros. Nem um piar. Nem um sussurro no mar.
Inesperadamente uma criança atravessou a rua.
Aquartelados os lobos uivaram. Alguém disparou.
Os galos cantaram de novo. Inutilmente pois ninguém dormia. No ar - farrapos de uma certa neblina. Nas ruas - as esquinas dos prédios permaneciam despovoadas de cegos. Os rios despertavam e o mar dava um sinal de chamada.
O vento amainou para um afago de velas e os barcos partiram para a faina.
O Inverno - por cima dos escombros - convocou-nos para um concerto ao ar livre. As folhas rebentaram nas árvores.
Uma criança, renascida das cinzas, desafiou o uivo dos lobos - começou a cantar com os pássaros.