na verdade a água corpo líquido de mulher tem segredos escondidos no fundo das pedras alimentos de fogo talvez uma praia onde se fundem areias e lábios um piano de luzes que determina o tempo das estações
ainda bem que tens ilhas selvagens sinais apócrifos que se desnudam em gestos simples no pestanejar de uma vírgula
na verdade a água sabe rir e chorar no espelho das próprias lágrimas no rumor das maresias e eu descobri uma vez mais que tens poros por onde respiras silêncios escarpas por onde escorrem salivas que te ergues e desmoronas abrigo e mensageira te desprendes do chão ou hibernas nos corais
Que bom ainda hoje partilhar contigo este despertar aprender vida fora a descobrir-te como se fosse a primeira vez deixar por um instante a outra água para os peixes se moverem
Inexplicável desafio transpor uma parede de mar num barco de papel - navegar por amor passo a passo - avançar, recuar e poisar no cais da utopia, onde só alguns ousam inscrever rotas e nomes de baptismo a céu aberto. Já tinham anunciado a morte do pomar, como se existisse morte ou princípio - mas quando revivemos um concerto silvestre, começámos a desenhar na palma das mãos, a velha Taprobana - e só tínhamos que fazer o que fizemos. Subimos às gáveas , contámos os náufragos que não deixámos morrer, até o Dique num rasgo de lucidez soltar os pássaros. Desembarcámos contra a indiferença e os textos apócrifos - soprámos o pó do tempo com a ajuda de um relâmpago que irrompeu por uma nesga de sonho - atravessámos pontes frágeis de cristal, mais fortes que o seu brilho - ficámos assim num abraço, improváveis nas palavras. É verdade. Alguns rios galgaram as margens, o mar lindo desgrenhado subiu à nossa escarpa - mas só para te ver renascida das cinzas, a tirar da boca e a lançar ao vento bagos de romã.
Com olhos tão abertos que nem pareciam olhos de ver, à tona partimos de tão longe. Navegámos a noção de um dia chegar, nus em chama a cerzir o recorte da montanha. Na verdade o que havia para arder já tinha ardido, mas ainda respiramos a verticalidade dos mastros tutores de árvores persistentes, o esplendor da nossa cordilheira de fragas nos mais profundos silêncios alcantilados. Partimos à míngua da luz dos relâmpagos indomáveis, muito antes das palavras se debruçarem na vertigem dos sonhos, muito antes de construirmos um barco para voar. Partimos à pergunta - não de um conflito de estrelas nos céus, mas de estrelas estateladas no chão. Nós sabíamos que por vezes a realidade ultrapassa a ficção, só não sabíamos que perante uma discreta sonata de pássaros silvestres, no pomar da romãzeira, o Dique ladrava mais alto, quase humano, como se fosse um cão - e tu passeavas indiferente.