quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A SOMBRA SE FAZ LUZ




 
 
 
 
Inextinguíveis
tardam os relâmpagos
mas o Inverno
gorjeia
dá sinais de vida
desfolha-se
no palco
onde a sombra se faz luz
e as amendoeiras
começam a florir
para espanto dos pássaros
 
  



sábado, 25 de janeiro de 2014

NA TUA VOZ



                                                                          Magritte                                      



Neste sítio de silêncios
sequestrados sem fronteiras

cantavas
cantavas
cantavas

e eu não sabia
se eras tu
ou um pássaro
simples  mente
a prender-me
o olhar
na tua voz

 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

NO PESTANEJAR DE UMA VÍRGULA



                                         publicado em 2008



Olho-te como se fosse a primeira vez

na verdade a água
corpo líquido de mulher
tem segredos escondidos no fundo das pedras
alimentos de fogo
talvez uma praia onde se fundem
areias e lábios
um piano de luzes
que determina o tempo das estações

ainda bem que tens ilhas selvagens
sinais apócrifos que se desnudam
em gestos simples
no pestanejar de uma vírgula

na verdade a água sabe rir e chorar
no espelho das próprias lágrimas
no rumor das maresias
e eu descobri uma vez mais
que tens poros por onde respiras
silêncios escarpas por onde escorrem salivas
que te ergues e desmoronas
abrigo e mensageira
te desprendes do chão
ou hibernas nos corais

Que bom ainda hoje
partilhar contigo este despertar
aprender vida fora a descobrir-te
como se fosse a primeira vez
deixar por um instante
a outra água
para os peixes se moverem


 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

LUZ VERTEBRADA







Nada é absoluto

nem este sítio
onde dulcíssimos cães
lambem os céus
sonâmbulos pássaros
mentem nas árvores sem memória

nem os gestos
aparentemente inúteis
a viverem de olhos fixos
em bando
acordados à sombra dos relâmpagos

Nada é exacto

a não ser uma certa luz
vertebrada
que se consome
ao entrar pelas frinchas
da nossa escarpa


 

domingo, 12 de janeiro de 2014

LÁGRIMA AZUL






A imperfeição
parece uma fonte inesgotável
de procuras

talvez por isso

apascentados
a revoar fragâncias
de limos

inocentes os animais
pastavam memórias

Desobrigada
a noite estava linda

Acendi um fósforo
na palha
só para ver
uma lágrima azul
quase perfeita
a despenhar-se dos teus olhos


 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A NOSSA ROMÃ ( 10 )






Inexplicável desafio transpor uma parede de mar num barco de papel - navegar por amor passo a passo - avançar, recuar e poisar no cais da utopia, onde só alguns ousam inscrever rotas e nomes de baptismo a céu aberto.
Já tinham anunciado a morte do pomar, como se existisse morte ou princípio - mas quando revivemos um concerto silvestre, começámos a desenhar na palma das mãos, a velha Taprobana - e só tínhamos que fazer o que fizemos.
Subimos às gáveas , contámos os náufragos que não deixámos morrer, até o Dique num rasgo de lucidez soltar os pássaros.
Desembarcámos contra a indiferença e os textos apócrifos - soprámos o pó do tempo com a ajuda de um relâmpago que irrompeu por uma nesga de sonho - atravessámos pontes frágeis de cristal, mais fortes que o seu brilho - ficámos assim num abraço, improváveis nas palavras.
É verdade. Alguns rios galgaram as margens, o mar lindo desgrenhado subiu à nossa escarpa - mas só para te ver renascida das cinzas, a tirar da boca e a lançar ao vento bagos de romã.


 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A NOSSA ROMÃ ( 9 )






Com olhos tão abertos que nem pareciam olhos de ver, à tona partimos de tão longe. Navegámos a noção de um dia chegar, nus em chama a cerzir o recorte da montanha.
Na verdade o que havia para arder já tinha ardido, mas ainda respiramos a verticalidade dos mastros tutores de árvores persistentes, o esplendor da nossa cordilheira de fragas nos mais profundos silêncios alcantilados.
Partimos à míngua da luz dos relâmpagos indomáveis, muito antes das palavras se debruçarem na vertigem dos sonhos, muito antes de construirmos um barco para voar. Partimos à pergunta - não de um conflito de estrelas nos céus,
mas de estrelas estateladas no chão.
Nós sabíamos que por vezes a realidade ultrapassa a ficção, só não sabíamos que perante uma discreta sonata de pássaros silvestres, no pomar da romãzeira, o Dique ladrava mais alto, quase humano, como se fosse um cão - e tu passeavas indiferente.