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Nesta ilha de náufragos e jangadas imperfeitas as romãs abriam os lábios explodiam multidões. Os cães adivinhavam o brilho dos relâmpagos e tu caías abrupta nos meus braços.
Quando te ouvi assim a cair dos céus, desamparada a lubrificar a terra, não sabia o teu nome, muito menos como te beijar os pés.
Quando te vi assim pendente, incolor, nua de tudo, chamei-te um nome qualquer e tu chegaste a cântaros, tão líquida por entre os dedos.
Recebi-te quase ninfa, de braços abertos na minha escarpa e assim ficámos vagarosos instantes a respirar eternidades.
Ainda hoje não sei quem és senhora.
Trazias nos cabelos um mar desgrenhado a derramar estrelas em cânticos sibilinos, barcos do outro lado do cais.
Fiquei sem saber se existias de facto ou teria sido eu a inventar-te.
Escancarei as janelas, acendi um fósforo no alpendre da casa, e tu lá estavas a cair dos céus, sem muros nem ameias, a cantar.
Visitavas museus, sombras de luz mas não eras simpatizante da luta de classes. Tinhas um Cristo crucificado nos olhos, uma vontade serena de liberdade, uma biblioteca onde se destacam textos apócrifos mas também vivificam Jorge Amado, Soeiro Pereira Gomes.
Se tivesse que te desenhar faria um gesto, um risco a carvão no ar que respiramos, bebia-te às mãos cheias e partia até ao fim do voo inventado, mas deixaria na tua árvore preferida uma romã.
publicado no meu "Para lá do azul"
Ver-te assim tão indecifrável
nos contornos e nas arestas
ancorada nas marés
em chama viva
a entrar pela casa vazia
sem desistir do silêncio
a resistir mesmo quando doem
os passos e as pontes
fez-me pedir ajuda
a um cântaro de água fresca
às pedras que cantam e tropeçam
nos pés das videiras
foi assim que nos despimos
e vindimámos
para os barcos cumprirem
o seu efémero destino
As uvas morreram nas tuas mãos
mas o pão cresceu nas nossas bocas
A minha escarpa
tem uma janela
escancarada para o mar
mesmo por sobre
barcos de passagem
latidos de cães
e metáforas
Neste sítio fustigado
onde nidificam
ventos e relâmpagos
ouvi um grito
em carne viva
mais real que os verdadeiros
soltei-o
e as palavras voaram
a fingir de pássaros
Estalajadeira
com mais longevidade
tantas voltas deu ao vento
pelos campos deste mar
que mais tempo temos
para morrer
Afastada dos belos precipícios
no seu jeito de ninfa
debruçada na escarpa
por sobre apeadeiros
nas paredes da casa
aguarda um barco
ou um bando de pássaros
mas sempre descobre histórias
inventadas
e recomeça a navegar
até a noite das luas cheias
se desvendar
num fio de música
onde temos por hábito
adormecer
Há noites tão pardas
que nem parecem noites
Se as noites sonhadas
fossem mares escancarados
poderíamos em carne viva
respirar uma flor
estremecida
no pestanejar dos olhos
assim
viajantes apócrifos
mais leves que o voo
nesta feira de pássaros
sem pátria nem rosto
como poderemos ver mais longe?
hastear um beijo
no outro lado do cais
ser de novo crianças
e fazer das palavras
aviões de papel
Memória do "LAU" um puro amigo SERRA DA ESTRÊLA
Ainda o sol gatinhava
os primeiros raios
quando te vi assim meu amigo
de olhos turvos
à sombra da oliveira
chorei contigo
mas de nada valeu o nosso choro
Num instante de luz
apareceste trôpego
mas chegaste
ao teu sítio preferido
junto à aparelhagem de sons
fotografaste a casa e morreste
Ladrei em surdina
fiquei de rastos
a ouvir o nosso jaze
"CHÃO DE CLARIDADES" colectânea (2008/2012)
Inesperada uma lágrima
na rebentação das águas
fez-me andar eternidades
silêncios de carne e osso
à pergunta dos teus relâmpagos
inverosímil lá estavas
íntegra
a dedilhar uma pedra
nos passos da areia
num afago de mãos
a colher o perfume silvestre
das maresias
tinhas um cristo
cruxificado nos olhos
e eu não sabia
se te chamavas pedra
barco flor ou pássaro
ainda hoje te chamo escarpa