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reconstruído
Hoje vi com os meus olhos
uma santa mulher
asfixiar um pássaro nas mãos
só para desenhar no chão
a dor que sentimos
chamei-a
para deixar nas areias
um beijo côncavo
até a memória arder
os últimos barcos
e as algas discernirem
de olhos abertos
todos os ritmos das marés
chamei-a
para esgrimir contra
a invenção dos destinos
erguer o seu corpo
recolher todos os grânulos disponíveis
Hoje vi uma mulher amada
esculpida na praia
a despontar nas areias
inacabada flor de Abril
Eufrázio Filipe
1930- 2015
A poesia foi o grande apeadeiro da sua vida. Poesia que reescrevia em cada livro para conforto das palavras. Poeta de galáxias, escarpas e mares infinitos, foi visita assídua de quotidianos, silêncios em voz alta.
Morreu o Herberto de tantos ofícios, vive a sua poesia.
Obrigado por todos os instantes.
republicado
As pedras marinhas de tão azuis
regressam à tona
juntam-se para respirar
a paciência das aves
cumprem destinos de migalhas
respiram fundo pelas narinas do vento
Viris e soltas povoam afluentes
puríssimos novos celeiros
talvez por isso queiram voar
contra o rosto das palavras
ou pairar como sinais de penas
As pedras marinhas
reanimam a voz oculta da luz
que se quer liberta insofrida
a coragem de lutar sobre ruinas
Eufrázio Filipe
2014 (Poética editora) Apontamento reconstruído
... e foi assim ...
um dia escrevi o amor é revolucionário e uma senhora que esculpi nas areias da praia, logo se levantou para me dizer
O amor é revolucionário? Interessante. Importa-se de me explicar claramente a sua ideia?
e eu respondi que sim.
Meu amor, nesta ilha rodeada de sonhos, se tivéssemos um barco, ai se tivéssemos um barco, como seria inútil este mar - lutaremos como somos e onde estamos.
A senhora de pé nas areias adiantou que as realidades quando sonhadas por vezes são mais verdadeiras - e ainda acrescentou - gostei de o ler, só é pena ser comunista.
Olhei-a nos olhos e respondi que não queria salvar o mundo só ajudar. A poesia é um prazer para quem escreve mas um desafio para quem lê. Tudo se move até o vento.
Por vezes um poema vale por um verso e um verso uma eternidade.
A senhora ainda de pé disse não ter entendido mas que as palavras eram lindas.
... e foi assim ...
neste chão de claridades, por mares nunca antes desgrenhados, subimos à nossa escarpa preferida para colocar um beijo no mastro mais alto da vida e dizer-lhe ao ouvido poemas ainda não escritos, presos a um sopro de vento.
EUFRÁZIO FILIPE
Num abraço
seduzidos pela vida
secreta das palavras
escrevemos emoções
mais fortes que a razão
aprendemos a ser lentos
a soletrar pelos dedos
gestos remos e passos
mesmo que chores
nos meus olhos
e eu numa folha de papel
Num abraço
se transfiguram pássaros
escarpas relâmpagos
mares desgrenhados
a síntese da nudez
Eufrázio Filipe
O granizo caía abrupto nas nossas vidas,queimava-nos a alma até aos ossos. Nunca mais chovia água de beber.
Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão. O mar vadiava nas frinchas das falésias e os barcos ancorados, aguardavam nos mastros outros ventos.
Nas ruas havia uma certa efervescência . Um respirar ofegante.
Nas ruas as esquinas dos prédios despovoadas para os cegos abrirem os olhos. Nas árvores nem uma folha para esconder o arrepio dos pássaros. Nem um piar. Nem um sussurro.
Ao desnascer da noite alguém acendeu um fósforo e fez-se madrugada.
Os rios despertaram. O mar deu sinais de chamada. O vento soprou para um afago de velas e os barcos partiram para a faina.
A Primavera por cima dos escombros convocou-nos para um concerto ao ar livre. As flores despontaram nas nossas mãos, a cantar com os pássaros, como se fossemos livres e somos.
Eufrázio Filipe