quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

DEZEMBRANDO


 


À míngua de relâmpagos

que se vejam

ateados na passagem de mais um ano

dezembrando
boas janeiras

 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O NATAL VAI COMEÇAR





O Inverno faz as pessoas recolherem às cavernas para melhor se amarem.
Sacode-se nas árvores penadas, inventa polícromos arco-íris, manifesta-se contra a perfeição, faz trejeitos ao rosto. Ri-se nos olhos de toda a gente.
Lá no alto, por cima das nuvens de chumbo, levanta a voz dos relâmpagos e às primeiras pancadas de Moliére, abre o pano. Vem ao palco e anuncia:

- Senhoras e senhores, a fábula " é uma pintura onde podemos encontrar o nosso retrato".
-Que dia é hoje?
- Silêncio.
-Senhoras e senhores, ides assistir à mais fabulosa história da minha estação.

As luzinhas furta-cores são as mesmas. O mesmo barro, o mesmo pinheiro, o mesmo musgo, as mesmas pedras. A mesma estrelinha na carapinha do mesmo presépio. O mesmo rebanho, os mesmos pastores, a mesma palha, o mesmo bafo.
Ides ser cúmplices dos animais, dos anjos que vão cair pelas chaminés nos sapatinhos dos meninos ajoelhados - até ao momento em que o galo cantará.

Lá fora as ruas estarão um sonho - até nos olhos dos outros meninos, colados nas montras do céu.
Tudo será luz nas casas iluminadas, nos corações vibrantes - menos nos olhos sem abrigo.

Vai chover. Amai-vos uns aos outros.
Eu sou o Inverno e o Natal vai começar.


 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

SIMPLESMENTE CHOVIA





Na falda da escarpa
pela estrada fora
em todos os apeadeiros
chovia um rio sem margens

água desprendida
não coada pelos céus

Sem dogmas
quase épica a chuva
em cânticos solenes
purificava a boca das sementes

só queria dar às palavras
a leveza das cinzas

mas simplesmente chovia

 

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

NOS BRAÇOS FLORIDOS DO MEDRONHEIRO






Num lento amanhecer
acendi um fósforo
para alumiar o tempo
nas pedras altas

Regressado à escarpa
comecei a escrever
na cal das paredes

e logo deram à costa
uivos de vento
silvos de barcos
palavras em carne viva
trabalhadas à mão

pássaros mais leves
que a neve derramada

Quando regressei à escarpa
exaustos
uivos silvos palavras
poisavam desgrenhados
nos braços floridos do medronheiro

 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

CHÃO DE CLARIDADES




Neste país tudo é possível.

Hoje a editora "Temas Originais" na semana de apresentação do meu
"Chão de claridades" informou-me que por dificuldades financeiras incontornáveis adiou a publicação.
Compreensivo regresso à minha escarpa para soprar os barcos que passam.

Solicito que aguardem
Apesar do caso estou grato a todos os amigos
porque" quem faz um filho
fá-lo por gosto"


 

CHÃO DE CLARIDADES




A editora mora aqui
temas .originais@.gmail.com
www.temas-originais.pt
Rua Salgueiro Maia 21 r/c
3040-006
Coimbra

Sejam bem-vindos a este encontro de amigos
no Seixal



 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

NO ESPELHO DA ÁGUA





Enlouquecidos
os cães uivavam
quando te debruçavas em arco
só para ver os barcos soltos
na volta da pedra

Silvestre
à hora do vento
no ramo mais alto
da minha árvore preferida
incantatória
vinhas à janela
só para ver

e eu lá estava
no espelho da água
a colher-te

Ainda hoje de tão perto
não sei quem és
mas sei que existes

e te desfolhas




 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

PÉTALA DESPRENDIDA






Para celebrar o hino
apócrifo do vento
nos barcos desgrenhados
respirámos fundo
a essência dos sargaços
e o mar inteiro
sem idade
mal coube nas nossas mãos

Estávamos tão íntegros
a hastear velas
no branco inconsistente das salivas
a riscar sulcos na água
garatujas nas paredes do cais
que não contive
nos teus olhos

uma pétala desprendida

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

OS NOSSOS MILAGRES SÃO FÁCEIS DE EXPLICAR





Muito antes da casa
aqui passava um rio de pomares
nas margens
cohabitavam romãs
penduradas por um fio
ainda hoje
projectam na água
o corpo que lhes dá forma

simplificando

aqui nas paredes da casa
onde passa um rio
não há romãs
mas de tão desejadas
existem

repartem-se como pão
bago a bago
nas nossas bocas

e assim aprendemos
que os nossos milagres
são fáceis de explicar


 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

QUANDO O POVO QUISER





Quando o povo quiser

se o povo quiser

não ficará uma pedra no chão


 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

GREVE GERAL POIS CLARO





Cá estaremos de pé
com fortes convicções
militantes da vida
pelos " filhos dos Homens que nunca foram meninos"

 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

À FLOR DA PELE




Os teus olhos pássaros

espantados

dedilham um rio

à flor da pele

 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

CHAMEI-TE MAR



 
 


No mais íntimo da pele
desgrenhei o vento
para te desassossegar os cabelos

escrevi na água
da chuva
para ver
como as palavras
se desmoronam

No mais íntimo da pele
lá estavas azul
tão azul tão azul
que te chamei mar

e já é tanto

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

CHUVA NA BOCA DOS AMANTES






Transumantes de silêncios
filtram ventos
na folhagem
latidos de cães
nos mastros ancorados

temperam relâmpagos
com arremesso de pedras
aos pássaros

apascentam desertos
povoados de estrelas
legitimam os céus

Herdeiros de silencios
afloram
paletas de searas
dão de beber às fontes
às pedras esculpidas

à chuva
na boca dos amantes


 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

ROSA DE SAL





Neste chão de ressonâncias
marés vivas
marnotos
marinhas valentes
e outros relâmpagos
transportámos
um sol de mãos cheias
à cintura um mar de sargaços

Nus de tudo
soprámos o espinho
que nos sangrava as pétalas

descobrimos as mãos
e os lábios
ao entardecer

dulcíssimos
oferecemos ao rio
uma rosa de sal


 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MANUEL ANTÓNIO PINA



Morreu um Homem

mas não morreu o Poeta

Não deixemos morrer os nossos mortos

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

PRESOS A UM SOPRO DE VENTO






Na véspera dos relâmpagos
os pássaros são eternos
conforme os apeadeiros

renascem ao som da folhagem
oferecem o corpo inteiro
e o desejo

pestanejam vírgulas
lábios remos e passos
numa cadência de asas

Na véspera dos relâmpagos
o mar organiza outros azuis
utopias em movimento

amplas claridades

sem âncoras nem limites
como nós
presos a um sopro de vento



 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

SEM DONO NEM DESTINO





Trago à palavra
a queda de uma folha

Estava a vê-la
transportar desamores
à pergunta de um sopro
que a libertasse do galho da videira

Foi hoje
pé ante pé
no torpor do sono

Sem dono nem destino
simplesmente caíu
para alumiar o chão
onde se deita

 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

UM CHÃO DE ESTRELAS





Solta de cores
participa espontânea
na construção de linguagens
a preto e branco

No Outono a minha árvore preferida
fica mais leve de palavras
chega a passo
desnuda-se da folhagem
para desafiar o vento
a soletrar hinos incomensuráveis
pelos dedos

vem habitar
um chão de estrelas


 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

EM PLENO VOO POR UM GRÃO DE AREIA





Não são únicos os caminhos

mesmo quando se cumpre
a rota dos sonhos
e os barcos se despem
de destinos por sobre as águas

Já tínhamos visto longe
a céu aberto
palavras íntegras a respirar
por guelras
pétalas a despontar nos desertos
mares a gorjear
na folhagem das escarpas
noites claras
ao som do relógio de pêndulo

Não são únicos os caminhos

mesmo quando andamos
a sibilar no vento
desapercebidos do pássaro
que renasce em pleno voo

por um grão de areia



 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O GRITO DAS SEARAS




No esplendor das águas doces
aparentemente mansas
tão brancas de espumas
e véus de noiva
as crinas do vento
para espanto dos pássaros
tornam-se sílabas itinerantes
melómanos
de silêncios incontidos
 
arredondam arestas
afagam pedras
despertam em cascata
por instantes
o grito das searas
 
 


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

NÃO HÁ ESPAÇO PARA CANTAR




 
 
Hoje não escrevo
alguém
escreva por mim
 
Neste bairro
não há espaço
para cantar
 
  

 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O VINHO DOS AMANTES



                                      Malhoa



Neste mar de searas
a espumar sede
na boca das sementes
procuro um relâmpago
para incender a noite
com um grito
despertar as estrelas
que dormem no chão

Esta terra precisa
ser fecundada às mãos cheias
no mais íntimo da pele
rasgar em pleno voo
os seus anjos preferidos
poisar nos galhos
contra os medos
dessedentar um grão de areia
e subir aos mastros

Neste mar de searas
e ventos mínimos
as uvas vindimadas nas escarpas
ainda hoje sangram
aos pés do povo

servem à mesa
o vinho dos amantes

 

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

FOLHA ANTE FOLHA






Pessoa amiga ofereceu-me uma folha de papel manuscrita a sublinhar versos avulso de poemas que tenho publicado. Vou partilhar o gesto amigo desta brevíssima viagem nos apeadeiros. Por instantes folha ante folha para não acordar os pássaros.

" gosto de brincar com as palavras para dizer o que os brinquedos dizem às crianças "
" ainda não aprenderam os meus olhos a verem-te como és mas apenas como te vejo "
" hoje acordei a fazer poemas ou quase nada"
"a vida desnasce do ventre até à foz "
"risco este muro de cal e aguardo a chuva para ver como se desmoronam as palavras "
" guardas ternamente as minhas impressões digitais e eu de ti o sorriso gaiato a luz torneada "
" pego-te ao colo poema lanço-te da mais alta oliveira mas só as crianças fazem do teu corpo aviões de papel "
" admito que é impossível este tempo de folhas adormecidas - num instante a folhagem ficará repleta de pássaros azuis "
" hoje não quero salvar o mundo, só ajudar "
" sopro-te e voo "
" o mar entrou-nos pelo corpo num abraço de limos areias com salivas para filtrar a memória "
" nos teus olhos há um barco pintado com a mesma cor da água"
" ofereço-te o meu cão de barro se puder respirar mais cedo o perfume das tuas maçãs"
"estávamos na época da poda das roseiras e tu chegaste vestida de rosas"
"falaremos com as árvores e seremos mesmo assim menos livres que os pássaros"
" entre a terra e o mar a inocência sem limites"
" o povo berbere sabia muito da arte da guerra mas pouco da ciência política - ainda hoje vive no deserto - livre do paraíso"
" Paris é uma mulher escultural nua com uma boina azul a passear na ponte dos poetas com o Sena a espreitar-lhe as pernas e as rimas"
" hoje acordei às 4h da manhã como de costume e fui comer uma maçã- lá estavas a sorrir à minha espera "



 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

À HORA DOS PÁSSAROS



 


Clara estava a noite
à hora dos pássaros

o vento recolhido nas gáveas
quando soprei uma pétala
no teu olhar

Foi hoje por um fio
nos labirintos menos conhecidos
que descobrimos
a idade dos espelhos

um certo caminhar
pelos itinerários da água
numa respiração profunda

Soprei uma pétala
despertei o vento

foi hoje
à hora dos pássaros


 

domingo, 19 de agosto de 2012

INSONDÁVEIS GARATUJAS




À sombra no altar das oliveiras
os cães com cio lambiam nesgas
de sol cumpriam liturgias
ladravam manso para atrair
os pássaros

Eugénio de Andrade
ao som de Nina Simone
em botão despontavam no cais
voajavam no vértice
das águas doces
tilintavam no bico dos teus seios

No altar das oliveiras
vencido o quebra-mar soprámos
asas velas e passos

escrevemos por gestos nas árvores
insondáveis garatujas
regressámos ao cais
com o latido dos cães

para dar de beber às fontes
acordar os barcos

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

NUMA VÍRGULA A PESTANEJAR





Coloquei uma folha de papel na ponta esquerda da mesa, onde escrevo. No alpendre as andorinhas em formação cagavam sempre fora do ninho mas não acertavam na folha de papel. Apreciei o gesto e aguardei o fim do ciclo - a partida para um novo e desejado regresso. Verifiquei hoje para meu espanto que a folha de papel estava limpa. Admiti que já tivessem partido. Mas não. Ainda ficaram uma noite para se despedirem de um rascunho que deixei na mesa. Lá estava o sinal dos afectos. Acertaram numa vírgula e eu comecei a pestanejar.





quinta-feira, 2 de agosto de 2012

MEMÓRIAS À VISTA



Desaguámos quase eternos
e lúcidos
neste rio azul
deitados por sobre um manto de águas

À tona
sem quebrantos
na vertigem dos espelhos
agitámos silêncios e remos
para alumiar os olhos dos peixes

No lastro das memórias
à vista
não sei porquê
mas foi assim em flor
que desaguámos


sexta-feira, 27 de julho de 2012

ESMAIA A MARÉ E SE ALEVANTA





 
Nesta acidental praia
quase de tudo deserta
ululante
como se fosse possível
um coração de ave
tricotar areias com os dedos
no teclado das águas

Desnavegado
fui lá dizer-lhe
com voz de escarpa

hoje não quero salvar o mundo
só ajudar

A maré estava cheia
de azuis
por amor à lonjura tangível
a ressoar acordes
numa apoteose de sussurros
coada de palavras
aqui tão perto
que nem lhe posso tocar

Nesta acidental praia
esmaia a maré
e se alevanta


domingo, 22 de julho de 2012

GESTO DE ASAS






 
Nos aquários todos os peixes
são pardos

No arco intemporal
do imaginário
os melhores beijos
são os que se beijam
clandestinos
de olhos fechados

Talvez por isso
meticulosamente
desenhei um pássaro
incompleto

e assim nos perdemos
num gesto de asas


 

domingo, 15 de julho de 2012

TANTO É O MAR





Tanto é o mar
em redor das ilhas
que já nem sei quem mais amo
se a chama das águas
se os barcos
naufragos à vista
oráculos ao ritmo das marés
apeadeiros de aves
a cumprirem trajectos
no desassossego dos ventos

Tanto é o mar
no vazio povoado
de explosões de vida
sequestrado no paraíso
dulcícissimo
só precisa um pormenor de azul
para subir aos mastros

Quando chegar ao cais
com asas trôpegas da viagem
descobrirá âncoras
que sempre existiram
em desafio
nesta desordem
de cores nos jardins



segunda-feira, 2 de julho de 2012

VOU ALI E JÁ VENHO






Entenderam por bem nidificar
as andorinhas
no ninho que desejei
construído no alpendre
por cima da mesa
onde escrevo para os pássaros

De tão grato
não me permito perturbar
nem com o silêncio das palavras

Vou ali
e já venho

terça-feira, 26 de junho de 2012

FAÚLHA A MINHA NOITE



                                               Almada Negreiros


Quando se alumiou
a noite
estava mais escura
que o negro dos teus olhos

Lá onde os céus têm estrêlas
itinerantes
a sombra candente
de um traço
moveu-se como pêndulo
projectado no chão

desorganizou o tempo
o ritmo das marés

mas os teus olhos
continuam a ser
uma faúlha

a minha noite





terça-feira, 19 de junho de 2012

UMA FLOR VERMELHA NAS PAREDES DO CAIS


                                               Poema que me apeteceu reeditar


Não sei quem és
mas pelos gestos vieste por bem
rasgar o vento com as mãos
a neve dos meus cabelos
e eu cansado de florestas apócrifas
das palavras em bando
comecei a plantar árvores
vi os pássaros regressarem
em acordes
a luz das noites que não dormem

Na partilha de horizontes
o amor é revolucionário
voa nos mastros mais altos
garatuja búzios de sons
intervem por causas
muito para lá das utopias
e se levanta resiste
ao pôr do sol
mesmo que os barcos entristecidos
estilhacem
nos espelhos da água
algumas pedras com vida por dentro

Registo por um instante
o ar que nos move
pinto com a boca
uma flor vermelha
nas paredes do cais



quarta-feira, 13 de junho de 2012

CONTRA O VENTO QUE FAZ





A minha escarpa tem um postigo
com vistas para o mar

araucárias desgrenhadas
salivas e trovas silvestres
em desmaio nas areias

A minha escarpa tem um postigo
donde não se veem os céus

miríade de sentidos
mais longe o olhar errante
se torna flor e tempestade

Quando sopro estas pétalas
amados os rumores da água
desponto neste chão

pego-te ao colo
beijo-te os olhos
contra o vento que faz




segunda-feira, 11 de junho de 2012

SEARA NOVA



Seara Nova

um espaço de diálogo democrático

Imperdível


terça-feira, 5 de junho de 2012

ARTESÃO DE METÁFORAS





Nas margens do rio
onde habito
respiram pautas desertos
retratos íntimos de flores
a preto e branco

repousam mãos famintas

Nas margens deste rio
quando a noite amanhecida
não dorme
ouvem-se pêndulos vagares
cadenciados
agitam-se os dedos

o tempo ousado dos poetas
que não eu
artesão de metáforas

No fulgor das águas
desprendo-me
a profanar metáforas
para ver mais claro
o teu corpo antigo  baloiçar
nas paredes da casa


quarta-feira, 30 de maio de 2012

MAIS LIVRES QUE OS PÁSSAROS


A letargia dos barcos
surpreende todos os silêncios
neste cais
onde nada é inútil
mas tudo é tão frágil

e nada mais acontece

Neste cais os pássaros
em desassossego
banham-se à sombra dos mastros
espantam-se de tanto se olharem
na concha das nossas mãos

e nada mais acontece

até o cais ser um cristal
mais forte que o seu brilho
golpe de asas e seara
contra todos os destinos

Nesse dia seremos
no espelho da água
mais livres que os pássaros



quinta-feira, 24 de maio de 2012

SEM MURAIS




Colho-te quando tudo
está tão pardo no cais

Colho-te nos lábios a fragrância
de braços abertos
como se nestas rotas a maresia
escrita à mão
fosse metáfora
arremesso de palavras
e sons

Colho-te as velas recolhidas
à pergunta de um sopro
barcos ancorados
a gatinhar nos mastros

até o grito se organizar
em coro
e as águas correrem livres
sem murais


sexta-feira, 18 de maio de 2012

NEM FLORES NEM DESTINOS




Estávamos no fresco trinado da Primavera
quando uma ave desconhecida
subiu mais alto
que o mastro das bandeiras

e logo hoje choveu
uma lágrima dos teus olhos

Estávamos no trinado da Primavera
o vento quase não se movia
mas nós carregávamos
a serra às costas
por esses mares desnavegados
a decifrar azuis
e outros destinos

Nós sabíamos que não existem destinos
e as flores não se oferecem
conquistam-se a partir do chão
até as pétalas se desfolharem

Só não sabíamos
porque choveu uma lágrima
dos teus olhos


sexta-feira, 11 de maio de 2012

CHOREI COM OS CÃES



                                                     Publicado no meu "caçador de relâmpagos"




Conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua cheia.
De repente, um vulto na minha rota. Não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor.
Saí do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano, lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho:
- É pá, mataste um cão sem dono.
A lua cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para dentro do carro.
Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz.
Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. O funeral foi marcado para a meia noite.
Todos compareceram.
Solidários, quatro amigos mais corajosos ofereceram-se para cavar a sepultura, num canto da horta, onde espontâneas medravam hortelãs.
Todos reunidos no silêncio.
Um uivo comovido despoletou um choro colectivo.
Só o Dique não chorou. Trazia na boca uma papoila que largou
em cima da sepultura.


sábado, 5 de maio de 2012

UMA NESGA DE SOL






Quando passa um sopro de lume
no espanto das marés
pétala a pétala
se desfolham primaveras
neste chão

mas nunca se perde uma flor
em carne viva

o olhar terno das pedras
abruptas
na voz silvestre da escarpa

Quando passa uma nesga de sol
puxada a remos
na expressão humana
de um barco
respiram à tona outros voos
devagar

te dou um beijo


terça-feira, 1 de maio de 2012

NO GRITO DAS MARÉS




                                                publicado no meu "Que fizeste das nossas flores"



Nos olhos um mar infinito de palavras soltas
faúlhas e rumores de vento
onde quedos se agitam por dentro
barcos ancorados

Nas velas recolhidas um perfume de algas
onde convergem todas as pátrias movediças
cardumes nos destroços das bandeiras

Estes são os olhos que me olham
nos espelhos da água

Os meus permanecem hasteados nos mastros
a despir horizontes desgrenhados
no grito das marés



segunda-feira, 23 de abril de 2012

QUE FARÁS DE TI?




                                                           Publicado no meu  PARA LÁ DO AZUL

Ainda não estávamos no tempo das vindimas, nem da fuga das andorinhas. Estávamos a regar uvas de mesa para te oferecer numa bandeja de lua cheia - mas tu estavas no paraíso dos silêncios a aprender - a prender ou a soltar amarras de barcos a voar com o próprio voo ou a cortar asas aos pássaros, sem teres espreitado o belo precipício das lindas tempestades - onde só cantam livres alguns fios de música quando lhes morde a voz.

As uvas estavam verdes, o tempo incerto e o chão íngreme já te desafiava em revérberos num torvelinho de rotas.

Quando vencemos o teu cordão umbilical, despertámos para uma certa revolução de estrêlas e ninguém sabia o que era uma revolução de estrêlas.
Talvez um dia saibas que as estrêlas podem brilhar no chão que pisamos, conforme as marés - que todas nascem, crescem e regressam como pêndulos a outras florações.

A lua não estava cheia, as uvas estavam verdes, as andorinhas só regressavam à noite e tu deste um grito que estilhaçõu  todos os silêncios.

Não foste um silvo de barco, nem um mar a rasgar escarpas, nem sequer o delicioso florir de uma araucária. Foste tu  e já é tanto.

E agora? Que farás para a água te lavar os pés? Que farás para o mar não te abandonar? Que farás para te conquistares? Que farás para as uvas amadurecerem e as andorinhas regressarem?

Que farás de ti, pelas outras estrêlas?



terça-feira, 17 de abril de 2012

LÁBIOS EM FLOR





Em Abril
tudo floresce a prumo
no jardim das memórias

Aqui tão perto
breve e desfolhada
no gorjeio dos afectos
há muito que não te expunhas
assim
pétala a pétala
numa paleta de cores
a despontar timbres
em campânula
a caminhar por sobre as águas
de novo criança
vento e mar
nos mesmos lábios em flor


terça-feira, 10 de abril de 2012

OLHOS FECHADOS







De olhos fechados
transportavas à cintura
um bornal
para sustento das águas

tão livre como o traço
que os desenhou
descobriste um rio
só para olhar

sem metáforas

exuberante a cumprir gestos
nas margens

De olhos fechados
o rio se fez ao mar





quarta-feira, 4 de abril de 2012

UM DEUS EM CADA ASA





Às mãos cheias
como o ar que se respira
na porta do desassossego
só batiam pássaros

traziam luz na voz
brilho no olhar
suaves registos de timbres
ressonâncias silvestres

mas não eram pássaros

eram fragrâncias

lábios de maresias
em carne viva
a expressão das flores
quando se despem das pétalas

Ainda hoje chegaram
num rasgo de lucidez

não bateram à porta
pousaram no parapeito das janelas
e partiram irredutíveis
pelo mesmo rasto

com um deus em cada asa






quinta-feira, 29 de março de 2012

PRIMAVERAS







Gosto de ti em botão
serena glicínia
rainha pendente
arrebatadora sábia tangível
nos jardins desta ilha
rodeada de sonhos
por todos os lados

Gosto das Primaveras
na espuma das marés
lábios perdidos
na boca das sementes
em todos os apeadeiros da vida
mesmo que chovam relâmpagos
e os cães ladrem

mesmo quando faz sol
e o país rebenta
nas areias da praia
à míngua de trovoadas

Gosto de ti senhora


 

sexta-feira, 23 de março de 2012

NOS LÁBIOS DA AREIA



                                                         Desenho de ÁLVARO CUNHAL


Ao entardecer
um bando de pássaros
desenhou
na palma das nossas mãos
uma vida inteira

e tudo parecia azul
no seu linguajar
mais alto que o voo

e assim aconteceram
duas linhas paralelas
prolongadas
que se encontram
aonde os olhos não mentem

Ao fim da tarde
tudo é mais claro

até o branco
nos lábios da areia