quinta-feira, 30 de agosto de 2012

FOLHA ANTE FOLHA






Pessoa amiga ofereceu-me uma folha de papel manuscrita a sublinhar versos avulso de poemas que tenho publicado. Vou partilhar o gesto amigo desta brevíssima viagem nos apeadeiros. Por instantes folha ante folha para não acordar os pássaros.

" gosto de brincar com as palavras para dizer o que os brinquedos dizem às crianças "
" ainda não aprenderam os meus olhos a verem-te como és mas apenas como te vejo "
" hoje acordei a fazer poemas ou quase nada"
"a vida desnasce do ventre até à foz "
"risco este muro de cal e aguardo a chuva para ver como se desmoronam as palavras "
" guardas ternamente as minhas impressões digitais e eu de ti o sorriso gaiato a luz torneada "
" pego-te ao colo poema lanço-te da mais alta oliveira mas só as crianças fazem do teu corpo aviões de papel "
" admito que é impossível este tempo de folhas adormecidas - num instante a folhagem ficará repleta de pássaros azuis "
" hoje não quero salvar o mundo, só ajudar "
" sopro-te e voo "
" o mar entrou-nos pelo corpo num abraço de limos areias com salivas para filtrar a memória "
" nos teus olhos há um barco pintado com a mesma cor da água"
" ofereço-te o meu cão de barro se puder respirar mais cedo o perfume das tuas maçãs"
"estávamos na época da poda das roseiras e tu chegaste vestida de rosas"
"falaremos com as árvores e seremos mesmo assim menos livres que os pássaros"
" entre a terra e o mar a inocência sem limites"
" o povo berbere sabia muito da arte da guerra mas pouco da ciência política - ainda hoje vive no deserto - livre do paraíso"
" Paris é uma mulher escultural nua com uma boina azul a passear na ponte dos poetas com o Sena a espreitar-lhe as pernas e as rimas"
" hoje acordei às 4h da manhã como de costume e fui comer uma maçã- lá estavas a sorrir à minha espera "



 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

À HORA DOS PÁSSAROS



 


Clara estava a noite
à hora dos pássaros

o vento recolhido nas gáveas
quando soprei uma pétala
no teu olhar

Foi hoje por um fio
nos labirintos menos conhecidos
que descobrimos
a idade dos espelhos

um certo caminhar
pelos itinerários da água
numa respiração profunda

Soprei uma pétala
despertei o vento

foi hoje
à hora dos pássaros


 

domingo, 19 de agosto de 2012

INSONDÁVEIS GARATUJAS




À sombra no altar das oliveiras
os cães com cio lambiam nesgas
de sol cumpriam liturgias
ladravam manso para atrair
os pássaros

Eugénio de Andrade
ao som de Nina Simone
em botão despontavam no cais
voajavam no vértice
das águas doces
tilintavam no bico dos teus seios

No altar das oliveiras
vencido o quebra-mar soprámos
asas velas e passos

escrevemos por gestos nas árvores
insondáveis garatujas
regressámos ao cais
com o latido dos cães

para dar de beber às fontes
acordar os barcos

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

NUMA VÍRGULA A PESTANEJAR





Coloquei uma folha de papel na ponta esquerda da mesa, onde escrevo. No alpendre as andorinhas em formação cagavam sempre fora do ninho mas não acertavam na folha de papel. Apreciei o gesto e aguardei o fim do ciclo - a partida para um novo e desejado regresso. Verifiquei hoje para meu espanto que a folha de papel estava limpa. Admiti que já tivessem partido. Mas não. Ainda ficaram uma noite para se despedirem de um rascunho que deixei na mesa. Lá estava o sinal dos afectos. Acertaram numa vírgula e eu comecei a pestanejar.





quinta-feira, 2 de agosto de 2012

MEMÓRIAS À VISTA



Desaguámos quase eternos
e lúcidos
neste rio azul
deitados por sobre um manto de águas

À tona
sem quebrantos
na vertigem dos espelhos
agitámos silêncios e remos
para alumiar os olhos dos peixes

No lastro das memórias
à vista
não sei porquê
mas foi assim em flor
que desaguámos