domingo, 27 de setembro de 2020

APRENDIZES DO VOO

 

Quando te disse

os nossos milagres são fáceis de explicar

o Outono entrou no corpo

das romãzeiras

e ao sabor de  um gesto simples

brotaram na tela

traços de aguarelas


foste o meu modelo preferido

só porque trazias no regaço

inquietudes de pétalas


e o mar ficou mais azul


e os barcos mesmo desfolhados

continuaram a remar

na flor dos relâmpagos


Quando te disse

meu amor como te chamas?


transgredimos  tantos silêncios

que ainda hoje

quando te pinto

somos água de beber

na boca das sementes


tão sábios aparente mente

à tona dos pássaros

aprendizes do voo

a contar pelos dedos

bagos de romã


eufrázio filipe


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO

 


A minha escarpa tem uma janela para o vento entrar de preferência com relâmpagos. 

Quando troveja inconformado abro a porta que dá para o alpendre e os Serra da Estrela vertiginosos avançam amedrontados.

Aninham-se nos tapetes da sala.

De alma lavada e farto pêlo,entram casa adentro, sacodem-se vivificam as paredes onde me acompanham um óleo de Kiki Lima outro de Albino Moura, pratos alentejanos, uma falua em casca de ostra, uma estatueta da Papua Nova Guiné, o velho relógio de pêndulo, um poema de Eugénio de Andrade. 

Quando o sol se esconde, troveja e os céus se derramam, a minha escarpa alumia-se.

Os Serra da Estrêla deitam-se e ressonam nos tapetes até eu pegar no sono e acordar a fazer poemas ou quase nada. 

Lá fora imperturbável (e)terno a dizer coisas improváveis - o meu cão de barro - resiste em vigília ao tempo que faz.


eufrázio filipe


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A CADEIRA VAZIA

 





Em cardume
nos olhos dos peixes
lá estavam os pescadores

Na véspera dos relâmpagos
e outros afectos
dulcíssimos corações
clareavam as noites
e nós só podíamos fazer
o que fizemos

sentámos à mesa os ausentes
levitámos em voz alta
o sussurro das marés
recolhemos estrêlas
no chão das águas

celebrámos a cadeira vazia


eufrázio filipe

poesia



quarta-feira, 2 de setembro de 2020

RESGATAR UM BEIJO

 



Rodeado de mares

contra todos os destinos

caminho por sobre as águas

à semelhança dos barcos


de quando em vez

regresso à minha escarpa

só para ver


Rodeado de mares

nesta ilha candente

ainda há espaço para cantar

levar o pão à boca

resgatar um beijo


eufrázio filipe