
Lá em casa,há mais de cem anos foi assim que me contaram.
Era uma vez o Natal.O dia do inverno branco e da generosa lareira
em família.Uma festa de silêncios incontidos e muitas histórias de pasmar.
Lá em casa ninguém rezava,mesmo nos momentos mais difíceis -
muito menos se pedia seja o que for ao menino Jesus.
Era uma festa bonita sem presépio onde nunca faltou um pinheirinho
com luzes de velas a incendiar os nossos olhos.A casa ficava cheia de amanhãs.
Há mais de cem anos,foi assim que me contaram - e talvez por isso -
ontem decidimos que era Natal.
Convoquei o meu cão de barro para o convívio em família.Destinei-lhe
um lugar nobre,junto à lareira.
Foi minha convicção que ali poderia ajudar com o brilho dos seus olhos
a dar mais cor ás cabeleiras do lume e ser amaciado de quando em vez
pelas mãos de veludo da nossa avó.
O Dique,firme no seu posto de vigília,aguardou paciente,leal e reconhecido
pelas doze badaladas do relógio de pêndulo.Participou em silêncio na orgia
das prendas,nas graças familiares,no acender e apagar das velas,no azinho
que ciclicamente alimentava a lareira,na festa coletiva - quando foi colocada
a descoberto a fava do bolo rei - e até achou meigo o beliscão que um dos
putos lhe deu numa das orelhas.
O Dique resistiu como um cavalheiro competente a todas as euforias.
Só não resistiu ao piscar de olhos de uma gata de peluche que lhe miou
em falsete qundo eu precisamente - lhe dei corda.
O Dique - cão de barro habituado a todas as intempéries,resistente a todas as estações do ano,com provas dadas no terreno,pastor de rebanhos inventados
protagonista de sonhos acordados - respeitado por saber ouvir -
cedeu ontem pela primeira vez na vida.Cedeu à ternura da gata e deixou
cair um dos seus olhos de esmeralda chinesa.
Era Natal mas nem por isso a nossa avó deixou de reagir - e de imediato disse com voz grave mas muito terna.
O Dique apaixonou-se pela gata.
Na verdade a avó não mente e a família assim despertada para o evento
só podia fazer o que fez.Cantou um poema de Natal.
O brilhante chinês foi de novo colocado com afecto no olho esquerdo
do Dique.
Aconchegámos os dois num caixote com palhas e ficámos assim
comovidos e a festejar.
Todos menos eu - que também já estava a gostar da gata.