segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

BARCOS DE PEDRA



Um dia disse

Hoje não quero salvar o mundo
só ajudar

e tu ficaste triste

Agora quando a noite raia
no restolho das palavras
um pássaro rubro
deixa nos teus lábios
um lampejo que se alumia
uma nesga de luz
um rio inclinado para a foz
onde todos os azuis convergem
para afagares a minha barba
cor da espuma

Agora que as pontes se deitam
por sobre as águas
para não as magoar

agora sim
vamos salvar o mundo

soletrar grão a grão o fio de areia
coado na ampulheta

movimentar barcos de pedra
com vida por dentro

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

À FLOR DE UM VERSO



Ainda não tinham despontado
as camélias
mas tu foste à janela
respirar o que julgavas ser
o seu aroma

soltar o fio de música
que nos prende silvestre
às palavras imperfeitas

Só regressaste quando te afaguei
os cabelos
acendi um fósforo para te ver
ungida
numa constelação de sílabas

A noite desnudava-se
como um rio
nos espelhos da casa
invadia os retiros mais íntimos da pele
até as águas bafejarem as margens
arredondarem as arestas do corpo

Incógnitos partimos
quando julgávamos ser
a última pétala

à flor de um verso

domingo, 23 de janeiro de 2011

QUE POVO É ESTE?


Sócrates está feliz.
50% do país foi às urnas. Metade destes 50% elegeu o chefe máximo do pessoal menor.
Estou a vê-los no regresso - cantando e rindo até às lágrimas
distraídos, vestidos de luto.

Que povo é este?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

SEARA NOVA



Que vivam as memórias democráticas
a resistirem sempre

A Seara Nova é uma revista imperdível

do pensamento e da cultura

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SOMBRAS VERTEBRADAS

Magritte


Já os cães tinham ladrado tudo
quando os pássaros se recolheram
em coro nos jacarandás
e tu chegavas alada
da ciranda
para repousar no parapeito
da minha janela

Aqui tão perto ressoavam
os meus silêncios preferidos
nas marés desgrenhadas

os teus olhos de púrpura
recolhidos em ânforas
numa feira de barro

para ficares mais leve de palavras

Sereníssima afloraste o velho alaúde

mas foi da escarpa onde te vejo
que nunca saberei quem és
a projectar réstias de sol
nas sombras vertebradas

que movem os teus dedos


sábado, 8 de janeiro de 2011

ANTES QUE O INVERNO ACABE



Não fixes os olhos
onde desnascem pedras
e em bando se precipitam os pássaros

Vem afagar os cães
o coração dos meus barcos

deixa que abrupta a chuva caia
em desalinho rasgue neblinas
quebre silêncios

Recolhe os sons da água
e os latidos
até que se encham os cântaros
rebente de vez a indiferença
dos ranchos
vergados a decepar videiras

Deixa que tudo se mova
Vem amar esta terra
às mãos cheias
mesmo que a voz se deite em surdina
para mais tarde acordar
a partir do chão

Deixa que abrupta a chuva caia
de preferência com relâmpagos
para te incendiar a íris
o rancho se levantar
e as videiras ganharem força

Vem
antes que o Inverno acabe



domingo, 2 de janeiro de 2011

O CEGO DAS ESQUINAS

publicado no "Caçador de Relâmpagos"

-- Digo-te a bruma coada na cidade, para êxtase do porvir. Incito-te ao levantamento do chão, onde adormecem lábios e pedras em murmúrios e salivas só para te ver transgredir as pautas.
-- Eu digo-te uma luz ao fundo, protegida por sombras e sons, numa campânula de pedras em arco.
-- Repara no cego.
-- Repara no cão.
-- Quando chega a casa - imagino um cubículo de madeira. O cego das esquinas mergulha as mãos no saco das bofetadas, retira-as para o tampo da mesa e conta o abandono a que o votaram em cada moeda coitadinha.
-- É o cego das esquinas. O tempo de rastos.
--- Quem anda a montar o tempo?
--- São os donos dos prédios altos que fazem esquinas para cegos.

--- São os fazedores de cegos, os vendedores de concertinas.