Nos apeadeiros do rio inteiro exuberantes olhos pestanejam vírgulas na folhagem inventam histórias verdadeiras onde a luz se alevanta na sombra branca dos aloendros
Por uma côdea de sonho remam memórias folha ante-folha amplas claridades no chão das águas
Entram devagar na Ponta dos Corvos por janelas escancaradas respiram fundo nos mouchões nidificam com as aves
por instantes quedam-se para os barcos escutarem timbres no brilho florido das varandas com sardinheiras que se despem ao espelho
no remanso quando a gaivota mais antiga expressa sinais silvestres respiram lentas afagam margens mostram o chão que já foi de areias e apanhadores de seixos
na bruma das pedras plangentes moinhos de maré registam os ciclos vertebrados das águas doces
Cantadeira de histórias verdadeiras decidiu fazer uma viagem de sonho. Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "Hotel das Dunas" . Viajou numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho criativo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do aeroporto. A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas em parceria cúmplice com pescadores de lagostas, que só abriam os olhos debaixo de água. Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna lhes aflorava o corpo. Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" espontâneo medrava na paisagem deserta - mas por fim choveu com abundância e o povo sereno saíu à rua hilariante. Houve quem tomasse banho nu em cima dos telhados, a proclamar a independência. Quando viram a senhora chegar, entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos e louvores. Nada de preces. Anos volvidos, nunca mais choveu, mas a senhora ali ficou encantada, a despertar silêncios, a hastear memórias da chuva. Em noites de lua cheia, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende, mas todos aplaudem. Chamam dona Arlete, à senhora das meias pretas. Acreditam que um dia vai de novo chover, na boca das sementes.