quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O PÓ DO TEMPO





Inesperadamente acordei

Coloquei o teu travesseiro no meu travesseiro
liguei o rádio
fumei um cigarro
abri a porta do relógio de pêndulo
para dar corda ao tempo
e ver-te passar

Soprei os ponteiros e voaste
tão longe
que só um dia te encontrei
na areia da praia
a olhar um barco
que nunca existiu

a não ser quando um pássaro distraído
em confluência de rotas
tranportou o vento nas asas
e pousou em silêncio
no teu olhar

Lembras-te?
Lembro.

Na rebentação das marés
onde se enleiam sargaços
começámos a soletrar pelos dedos
palavras excessivas belas imensas

a erguer das cinzas
o pó do tempo

domingo, 27 de dezembro de 2009

QUE OUTRO MAR EU NÃO SEI?







Subi ao que pensei ser
o mastro mais alto da vida
só para te ver
onde sei
que o mar faz os seus ninhos

Foi lá que lançaste um grito
e as águas de novo
começaram a ser lavradas
ganharam outro sentido
e os teus olhos
não sei porquê
choveram nos meus

Para lá do azul
estou a ver-te
assertivo por sobre escombros
a desbravar claridades
a desmandar o trilho dos barcos

e eu pergunto-me

quem te soprou os passos
para este cais?

que outro mar eu não sei?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

NEM TODAS AS FAMÍLIAS SÃO UM PRESÉPIO



Por exclusão social ou sinal de ludidez
nem todas as famílias são um presépio

Foi assim que pensei
quando vi na esquina do prédio
uma senhora com uma criança ao colo
a pedir esmola
e a desejar boas festas

a quem passava

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ATÉ AS ÁGUAS SE FAZEREM AO MAR



A partilhar salivas
ondulámos os lábios
num instante cúmplice
quando o mar inteiro
nos teus olhos
ficou azul

A chuva prometia tempestades
e tu aparecias no cais
flor clandestina
a tactear a luz dos relâmpagos

perguntavas
se traziam sinais de madrugadas
a palavra certa
num ramo de oliveira

Estávamos no tempo dos barcos
vertebrados
que davam à costa
e se demoravam
por amor aos poetas inocentes

Assim ficámos submersos
a resgatar âncoras

até as águas se fazerem ao mar

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

MAIS AZUL QUE O CÉU




Numa cadência de remos e passos
se te pudesse transportar
seria num barco alado
para chegares como sempre chegaste
imaculada
a tecer estrelas de linho

solta

a navegar em arco
com um violino no regaço

Se fosses possível
num traço de azuis
bastava sulcar as águas
para vires à tona
construir outras pontes
incendiar as margens

mas tu sabes que não existem
barcos alados

Talvez por isso ainda te veja
em preces
sentada nas areias
a levar à boca a foz do rio

até o meu barco
ser mais azul que o céu

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

ONDE A LUZ SE ATEIA


                                             René Magritte                   

Desde as últimas pétalas
que não te via neste mar

tão breve
solidária
pelo tempo fora

Reconheci-te peregrina
pelo ressoar das águas

Trazias referências inscritas
nas asas
uma espécie de destino
memórias incumpridas
sem palavras nem repouso
à descoberta de uma pausa
na fissura das escarpas

Gostei de te ver
no cimo dos meus olhos

onde a luz se ateia

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

SOLTAR OS PÁSSAROS



Os cães choravam em silêncio
e eu não sabia porquê

Pensei no pobre limoeiro a afundar-se
lá onde nidificam toupeiras
ao entardecer
na estrela persistente
que viceja à noite no portão
nos olhos claros de um certo azul
que ilumina a casa
no desfolhar ensombrecido
das roseiras

Vasculhei tudo
invadi searas proibidas
até ao mais íntimo da pele
pó, sombras, sonhos


Perguntei-te - quando desaguas?

e tu desaguaste à janela
a marejar entristecida
e eu não sabia porquê

Foi quando os cães se levantaram
para soltar os pássaros

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

QUE O RIO DESAGÚE



Quando o vento em lufadas
implacável zurzia
na fenda das escarpas
nós estávamos inocentes
nas ameias deste mar
a contar o tempo pelos dedos

Aguardávamos que o rio
desaguasse até ao fim
para a grande festa das águas

Só por isso soltámos os barcos
e as aves se embalaram
nos mastros enlouquecidos
e tu começaste a chover
relâmpagos nos meus olhos

Foi quando descobrimos
ao alcance das mãos
todas as belas tempestades
e nos desnudámos de tudo

com gestos simples e lentos
por todo o corpo

mas ainda hoje aguardamos
sábios e mudos

que o rio desagúe

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O MEU HERÓI





Ainda não gatinhavas
no chão que pisamos
já eu sonhava para ti
um mar azul

mas foi quando te peguei ao colo
que acrescentei um sinal
a uma palavra
que flutuava como um rio
nos meus olhos

Tudo passou a fazer sentido

a chuva o vento o relâmpago
a flor da oliveira

Se não me sofresse
como te poderia amar?
seguir os teus gestos

Ainda hoje nasceste
e já eras a minha estrela
o meu herói

terça-feira, 10 de novembro de 2009

AS PALAVRAS NÃO SABEM RESPIRAR POR GUELRAS


                                       Sieghried Zademack


Todas as palavras são parcas
mesmo as que se afogam
por não saberem respirar por guelras

Foi assim que te dei um abraço
que não era um abraço
mas uma transfusão de sangue

e tu não sabias
nem eu

que abraços entre nós
são rios de luz
vasos comunicantes

Todas as palavras são parcas
mesmo quando voam
se fendem ou fundem
por lucidez ou distracção dos pássaros

Assim persistimos em destruir
e construir margens
para celebrar o ventre
e a foz do rio que desagua

Vivemos numa ilha cercada
de sonhos e sonos

Se tivéssemos um barco
seria inútil

Assim ancorados nas areias
até à fronteira dos horizontes
vamos continuar a destruir
e a construir
pontes e muros

só porque as palavras
não sabem respirar por guelras

domingo, 8 de novembro de 2009

TANTOS MUROS POR DERRUBAR





Quando os interesses da direita política invadem o mais representado partido na Assembleia da República, o "socialismo" torna-se social-democracia e liberalismo - em nome propalado de uma pálida esquerda que se diz representar, mesmo considerando no P.S. um punhado de respeitáveis personalidades, que nele militam distantes da hierarquia instalada.

Deste modo bem pode este nosso pobre país almejar que se anuncie com firmeza, independencia e honra - a ordem e a eficácia na prática da justiça. Pelo menos que se verifique o declínio das manjedoras.

De facto as empresas públicas geridas por administrações não sujeitas a concursos públicos de avaliação de competências técnica cientifica e idoneidade expõem-se por nomeação política dos seus gestores.

As empresas públicas com estas orientações sistemáticas expoem-se antes de serem privatizadas a serem corrompidas pelos privados - não por serem empresas públicas, mas por serem geridas ( não quero generalizar ) por individuos corruptos com óbvia responsabilidade política de quem os nomeia.

Neste pobre país quando o Procurador Geral da República reconhece que há magistrados na Opus Dei e nas maçonarias, a "coisa" torna-se ainda mais complexa. Estas lojas não são a dos trezentos, são espaços fraternos notáveis e transversais de cumplicidades, com enquadramento legal.

Curioso ou talvez não - nos mega processos que abalam e afrontam o país - em todos eles - só é condenado um bibi, nunca o sistema.

Tantos muros por derrubar

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O TRAÇO QUE NOS MOVE


                                                   João Cutileiro


No dia em que te disse

hoje não quero salvar o mundo
só ajudar

tu dormias profunda mente
riscada a carvão
numa folha de papel

bela
gaiata
desgrenhada
numa janela para o mar

Nesse dia tilintei pueril
no bico dos teus seios
acordei a voz dos pássaros
e nada mais aconteceu

a não ser o traço
que nos move

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

ESTAMOS SEMPRE A PARTIR



Antes da chuva nos bater à porta
já tinhamos sonhado
agitar tempestades

só nos faltava construir
um caminho certo para os barcos

Partimos rumo ao improvável
sem repouso infinitos
inocentes

nós e a chuva

em segredo estradas fora
construimos um barco
inventámos uma estrela
para seguir as aves
em pleno voo

Partimos antes da chuva
sem conhecer o destino das tempestades
muito menos o frémito
do tempo que faz

Vamos partir?
Estamos sempre a partir
e a chegar.



terça-feira, 27 de outubro de 2009

PRESO DE UM BEIJO



Quando chegas de mãos dadas
a rasgar neblinas
não fosse a obstinação
de olhar um desejo
já os barcos ardiam
na fímbria do mar
gestos mastros velas
até a âncora que me solta
nas metáforas

Quando chegas sem nome
cúmplice da água
não fosse o cântaro de barro
te afagar os lábios
para matar a sede às palavras
já teríamos criado outro deus
na inconsistência das salivas


Quando chegas
como se fosse a primeira vez
se não fosse
tudo seria inútil no teu corpo
mas eu continuaria preso
de um beijo


Quando chegas?




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O CHÃO DOS BARCOS




Lá fora os céus liquefeitos
tombam abruptos
dividem-se nos telhados
estatelam-se nos teus olhos

Apócrifas aves quase divinas
em poses magestáticas
lançam arrufos de ternura
desfolham-se infinitas
em silêncios sibilinos
de asas ventos e remos

Lá fora os céus coados
fingem que são chuva
e eu debruço-me
a meio da ponte
só para ver a água deste rio

o chão dos barcos



domingo, 18 de outubro de 2009

NA SÍNTESE DA TUA NUDEZ




As romãs estavam a abrir
em bagos vermelhos na tua boca

ao fundo a erva crescia desmesurada
por sobre a mesa e as cadeiras
onde sentamos os silêncios

quase todos

porque ainda reservamos passos
e asas na memória comprometida
bago a bago
folha ante folha
para não acordar os pássaros

Ali ao fundo vagueiam sem amos
madeixas de vento por um fio

Neste caminhar traço a carvão
nas paredes da casa
o teu corpo livre de sombras
desnudo-me com as romãs
na síntese da tua nudez

domingo, 11 de outubro de 2009

CAÇADOR DE RELÂMPAGOS




Um dia disseste que todas as estações são apeadeiros do meu corpo e eu respondi-te que uma folha caía a teus pés e tu disseste que não eram os teus pés mas tão só dois pedestais. Estávamos de novo no Outono e tu surpreendeste-me porque sabias que a folha caíu aos teus pés e voltaste a dizer mas de outro modo - Ai se os meus pés fossem pedestais.
Foi então em conversa com um grupo de árvores que todas me disseram para não reparar nas folhas que caem porque sempre  algumas se levantam e  até as persistentes gostam de um sopro para voar.

Quando a meio da noite, ainda os galos não cantavam, entendeste por bem revelar-me um segredo e disseste baixinho, para eu acordar devagar
-- Fui convidada para de novo assumir a pasta da cultura. Tenho 24 horas para decidir.
A fingir de sonâmbulo respondi-te em surdina
-- Eu tenho um convite para a debulha do trigo na Malhada dos Porcos.
-- Tudo bem, ajuda a reflectir.

Partimos. O percurso tinha boas memórias. Abandonámos a via principal, invadimos as azinhagas. Libertámo-nos no pó das coisas simples. Transcendemos o caminho. Voámos. Assumimos a dimensão do espaço e recordámos uma experiência que não resultou, não sei porquê.
-- Pensei ocultar os teus olhos nos meus só para te olhar mais de perto. Recordas-te?
-- Foi quando te revelei o meu hábito de olhar o chão.
-- Quando tropeçaste uma pedra para atirar à sombra dos pássaros.

Chegámos à Malhada dos Porcos. Já estavam a borrifar o chão da eira com água do riacho. Todos em redor e de mãos dadas. Em movimento quando entraram tímidas as ovelhas. Cantámos.
Circulámos com os animais. Calcámos o chão. Uma festa de amigos.
A roda com o tempo estreitava-se aos poucos até as ovelhas saírem, finalmente livres para os estábulos.
Agradecidos batemos palmas aos animais.
Entretanto chegou o acordeão e a guitarra campaniça. Começou o baile e os petiscos com doces conventuais até o chão ficar duro para no dia seguinte o trigo ser malhado.
-- Uma vergonha.
-- Não sei porquê.
-- Porque adormecemos altas horas na eira, por cima do cereal.
-- Ainda comemos pão daquele trigo.

A luz apagou-se. Acende os candeeiros. A trovoada aproxima-se.
-- Já não se pode dormir nesta casa.
-- Uma vez mais as belas trovoadas, a chuva a lubrificar a terra e os cães que não guardam relâmpagos a protegerem-se na casa dos donos.
-- Abre-lhes as portas.
Esta trovoada brinca aos relâmpagos. Vai e vem, ululante, ribomba nas fortes bátegas. Parece o fim do mundo mas é tão só uma violentíssima trovoada.
-- Ouviste?
-- Um estoiro no jardim.
-- Que belo estoiro.
-- Não me digas que o pára-raios caçou um relâmpago.

-- Recomeçamos?
-- A história da folha aos teus pés? A Malhada dos Porcos?
Já passou.
-- As 24 horas para decidires também já passaram.  Serás a ministra dos meus galinheiros e eu vou aprender a caçar relâmpagos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

COMO SE TIVESSEMOS UM BARCO


                                    Joaquin Sorrolla y Bastida


As palavras vogavam soltas
em torrente
alagavam sapais
caldeiras de moinhos

As garças tricotavam pios afrodisíacos
e as canoas lançavam redes
para cercar os peixes
nas marés vivas

Os teus olhos debruçados na margem
circulavam em turvelinho
afagavam a faina

Quando nos soltámos crescemos
e lá fomos barra fora

como se tivéssemos um barco
que não anoitecesse

terça-feira, 29 de setembro de 2009

PELA VIDA FORA




Estava em desassossego
a despertar o timbre
de outros mares
quando lançaste uma flor para o palco

Uma flor vermelha
de lábios doces
que recolhi pétala a pétala

Nunca soube quem és
muito menos do teu jardim

mas sei que me acordaste
pela vida fora


domingo, 27 de setembro de 2009

O POVO É QUEM MAIS ORDENA(?)


                            eugéne delacroix


Em 1830 Eugéne Delacroix pintou " a liberdade guiando o povo"
porque não bastava, não basta ter razão, é preciso ganhar o "povo" para a sua razão.
O "povo" à solta e a soldo perde-se de razões contra a sua razão, tresmalha-se na indiferença, vende-se sem estar à venda, venda-se e adere mais fácilmente nas rotundas do mercado das imagens e do poder, prescinde da força que tem, é um anjo que sofre, carrega andores e paga. 

Não sei se vem a propósito mas não resisto a transcrever este diálogo a que assisti, por acaso, numa esplanada, duas horas antes do final para a votação nas legislativas.
"
- Não vais votar?
- Não sei.
- Pá - se não votares não podes pedir empréstimos aos bancos
- A esses gajos não peço nada.
- Tá meu - mas também não podes ser 1º ministro.
- Ok - vou votar.
- É um dever.
- Ok. serás meu motorista. "

O país ainda implume - após o acto eleitoral - deu um sinal.

O ps perdeu a maioria absoluta e declara-se vitorioso
O psd não atingiu a maioria relativa e declara-se o maior nas autarquias locais.
A CDU e O BLOCO são de facto a victória da ruptura e da esquerda com mais votos e deputados.
O cds é o regresso da extrema direita aos submarinos.

O povo é quem mais ordena?

sábado, 26 de setembro de 2009

DOMINGO CONTRA A INDIFERENÇA



Domingo pelas memórias e por todos os amanhãs

sei que vou por aqui

em riste com o meu voto

pela CDU

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

OUTONO


                                            imagem no Teatrices


UMA FOLHA CAÍU

SIMPLESMENTE

AOS TEUS PÉS


sexta-feira, 18 de setembro de 2009

QUANDO ERAS UM RIO




Quando eras um rio
a rasgar caminhos vertiginosos
e as escarpas seguiam
imaculadas os teus olhos
os peixes ficavam encarnados
na tua boca
nidificavam entre margens
enleados

Quando as sombras das pontes
nem sequer eram fronteiras
e eu disse que os rios correm
do ventre até à foz
tu sabias que só o mar
os acolhe

Quando eras um rio
eu dava os primeiros passos
na água



sábado, 12 de setembro de 2009

NO SENTIDO DO VOO



O mar sangrava espumas brancas
lenços de linho
nas ruas deste chão

Eu sabia que serenamente
no fim da Primavera
serias a última a partir

só não sabia que eras tu

Ainda desenhaste um círculo
para eu traduzir o teu rumo

Corri no sentido do voo
mas a água só me consentiu
um breve patinhar

Regressei à casa vazia
muito antes da luz
se afogar em palavras

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A RASAR O VENTO


Ainda não chovia

da ultima vez que raptei

o sinal que trazias nos olhos

Consentiste que fosse o ladrão

do teu olhar

mas tive que rasgar uma janela

por sobre as águas

Estavas num barco

caiado de branco

com palavras a arder

e eu perguntei-me

que fazer deste lume?

Aproximei-me e vi claramente

uma balsa sublimada

a rasar o vento

onde me transporto

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

FESTA DO AVANTE



Na bela e disponível Quinta da Atalaia, beijada pelo Tejo, olhos postos no Moinho de Maré de Corroios, debruçada no pulmão da baía natural do meu Seixal - acontece a Festa do Avante.

Ponto de encontro com expressão nacional, a Festa afirma o PCP num grande espaço aberto a todos. Culturas e tradições.
Pessoas com e sem lapelas partidárias.

O mar arável este fim de semana vai à Quinta
da Atalaia.

sábado, 29 de agosto de 2009

ONDE NIDIFICAM AS MARÉS


A praia estava tão só
de tudo
que mais parecia uma casa vazia

até os azuis desmaiavam
num tresmalho de céus

Nem um barco, uma asa,
uma brisa, um pó

Só uma breve espuma
adocicava as areias tatuadas

Nesta elegia de silêncios
em repouso
as águas lamberam
os teus últimos sinais
mas não o mirífico lugar
onde se despem e nidificam
as marés

sábado, 22 de agosto de 2009

O PÃO CRESCEU NAS NOSSAS BOCAS


Ver-te assim tão indecifrável
nos contornos e nas arestas
ancorada nas marés
em chama viva
a entrar pela casa vazia
sem desistires do silêncio
a resistir mesmo quando doem
os passos e as pontes
fez-me pedir ajuda
a um cântaro de água fresca
às pedras que cantam e tropeçam
nos pés das videiras

Foi assim que nos despimos
e vindimámos
para os barcos cumprirem
o seu efémero destino

As uvas morreram nas tuas mãos
mas o pão cresceu nas nossas bocas

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A CASA VAZIA

Nem as tuas ancas são como os barcos
nem eu vejo
no teu corpo
uma casa vazia

mas hoje
quando o vento nos bafejou
tão breve
reparei como o chão se desnudou
para os barcos desenharem na água
o baloiço das tuas ancas
adormecerem o perfume
em colares no teu corpo
e a luz arder a prumo
antes que a chuva se desmande
neste desassossego
de lábios e areias
Ao longe a casa vazia
com portas abertas
janelas escancaradas
para quando chegarmos
tudo fique mais azul
em cada sílaba

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A VERDADE DOS SONHOS


"Para ser grande, sê como és. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa, põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a luz toda brilha, porque alta demais. "
- Fernando Pessoa.
- Não, Ricardo Reis.

- Estávamos como estamos, num país onde os cães que não mordem se desesperam a ladrar.
- O Dique não ladra.
- Mesmo assim o país, com olhos tristes, ri de cócoras.
- Fernando Pessoa foi um místico.
- Vamos dormir?
- A esta hora todos dormem?

E foi assim neste diálogo de merda, quase institucional, que exaustos da amálgama de sons imperfeitos nos recolhemos ao paraíso dos silêncios tresmalhados.
Aqui - beneficiamos dos improvisos sábios do Dique, do generoso galinheiro com vistas para a rega automática, da serenata das folhas quando o vento lhes assobia.

Um dia parámos as bicicletas numa azinhaga, à porta de uma placa tosca, de madeira, que anunciava - "vendo patos".

Adolescentes como Ricardo Reis, comprámos uma pata com as suas dez crias. Todos mudos para não interferirem no belo canto do galo - um tenor ancião que subia ao poleiro para exibir a voz quando a luz acontecia. Na lua cheia chegava mesmo a enrouquecer, mas o país que o aplaudia, não votava.

Nesta harmonia aparente os patos cresceram e inesperadamente começaram a depenar as galinhas.
O galo deixou de cantar e o Dique esteve na eminência de ladrar mas conteve-se para não se confundir com o poder.

A noite estava cerrada quando decidimos intervir. Transportámos os bancos da cozinha para o galinheiro, um violino e o meu mais recente livro de poemas.

Patos de um lado, galinhas do outro. Nem um piu, um pestanejar de olhos. Só um ressoar de penas para aconchego das asas.

À porta do galinheiro o Dique, imponente - observava, sem dizer uma palavra.

- Começas tu com os poemas?
- Prefiro tocar violino.

Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem.

O Dique levantou a cabeça e fez-se luz. Começou a lamber a lua cheia e o galo despertou - começou a cantar.

Retirámo-nos pé ante pé para não perturbar o concerto.

No dia seguinte a pata tinha sido galada pelo tenor. As crias visivelmente reconhecidas afagavam as penas das galinhas, que punham ovos nos sítios mais incríveis.

- Acorda. Acabei de sonhar uma história.
- Outra vez o Ricardo Reis?
- Não a outra.
- Já ouvi essa história e continuo a não entender como é possível um cão de barro, numa noite cerrada, lamber a luz da lua cheia.

Onde está a verdade dos sonhos?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

QUE FARÁS DE TI ?

claude monet
Ainda não estávamos no tempo das vindimas, nem da fuga das andorinhas. Estávamos a regar uvas de mesa para te oferecer numa bandeja de lua cheia - mas tu estavas no paraíso dos silêncios a aprender, a prender ou a soltar amarras de barcos, a voar com o próprio voo ou a cortar asas aos pássaros, sem teres espreitado o belo precipício das lindas tempestades - onde só cantam livres alguns fios de música quando lhes morde a voz.
As uvas estavam verdes, o tempo incerto e o chão íngreme já te desafiava em revérberos num turvelinho de rotas.
Quando vencemos o teu cordão umbilical, despertámos para uma certa revolução de estrêlas e ninguém sabia o que era uma revolução de estrêlas. Talvez um dia saibas que as estrêlas podem brilhar no chão que pisamos, conforme as marés - que todas nascem, crescem e regressam como pêndulos a outras florações.
A lua não estava cheia, as uvas estavam verdes, as andorinhas só regressavam à noite e tu deste um grito que estilhaçou todos os silêncios.
Não foste um silvo de barco, nem um mar a rasgar escarpas, nem sequer o delicioso florir de uma araucária. Foste tu e já é tanto.

E agora? Que farás para a água te lavar os pés? Que farás para o mar não te abandonar? Que farás para te conquistares? Que farás para as uvas amadurecerem e as andorinhas regressarem?

Que farás de ti, pelas outras estrêlas.


domingo, 2 de agosto de 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

LISBOA NO CAOS DO SODRÉ



António Costa e Santana Lopes - candidatos à presidência da Câmara Municipal de Lisboa foram dois advogados a falarem de finanças. Evidenciaram dois zeros - um à esquerda e outro à direita.

Esta foi a diferença - a posição dos zeros. Um potencial candidato a primeiro ministro, o outro ex-primeiro ministro por acidente, a "recibo verde".

Olhos postos no monstro político da bipolarização, exibiram a contabilidade dos números no primeiro debate televisivo.

Antes das eleições legislativas, a setenta e três dias das eleições autárquicas - o eleitorado - "óbviamente" o que mais domina, são os números. Admito mesmo que estivesse a contar pelos dedos nas esplanadas para saber das contas do município - o deve. o haver e o pagar das dívidas de cada um dos candidatos.

António Costa na ausência de uma coligação política credível com incidência partidária responsável, preferiu uma caldeirada sem ideologia.

Santana Lopes reabilitado a pedido de várias famílias, tenta de novo uma luz ao fundo do túnel.

Imagem/ sondagem/ sacanagem/ - um "versículo" de Manuel Alegre sugere-nos ( apenas sugere) que nem António Costa é Duarte Pacheco nem Santana Lopes é Pina Manique.

Melhor seria que um e outro recuperassem de uma gripe, que lamentávelmente não os bafejou.

Deste modo Lisboa vai estar em disputa
no caos do Sodré

quinta-feira, 23 de julho de 2009

NA HORA DO GADO



Os silêncios não são todos iguais. Este é o da vasta planície aloirada, mais longo que o espaço dos teus braços abertos. Um silêncio pontuado por rebanhos, azinhagas e azinheiras. Um silêncio de cal e casas rasteiras. Cânticos em grupo ao ar livre quando a lua está cheia e os homens se encontram para falar, cantando.
Neste silêncio de ventos brandos e quentes - que nem parecem ventos - os olhos do senhor Anastácio não se vergam.
Nunca foi maioral mas fazia milagres com o assobio. Cruzava a "estrada" com a bandeira nacional hasteada no cajado, para anunciar ao silêncio que o gado lento ía atravessar.
Pastor de sonhos, dormia com os animais. Só aparecia em casa aos fins de semana.
No Verão, quando o tempo fervia o sangue da planície e o silêncio se tornava insuportável, quando a vida se tornava palha - alugava um táxi na aldeia e levava a mulher e os filhos ao litoral, só para que vissem o mar.

Encharcava os moços de brilhantina e a mãe protestava.
- Tanta brilhantina Anastácio.
- É para os moços não se perderem na praia.

Sentados nas areias molhadas, enquanto os putos se perdiam de vista, o senhor Anastácio dizia baixinho.
- Maria, este não é o meu mar. Esta não é a minha gente. A minha gente são os teus olhos de mel.
- Não mintas.

De súbito o homem do táxi alertou em voz alta.
- Anastácio, está na hora do gado.

Um assobio silvestre e a canalha tresmalhada não apareceu. Teve de percorrer o rasto da brilhantina.

À chegada o gado à solta balia e o senhor Anastácio disse uma vez mais- baixinho.
- Meus filhos, só vocês não se perdem.

sábado, 18 de julho de 2009

NA CLARIDADE DAS ÁGUAS



Quem decide àcerca do curso
dos rios nem sempre
são as margens

Conheço rios que seguem loucos
as rotas das aves

Lembras-te
quando rasgámos
por uma fresta
os caminhos do mar?

O vento tinha nas veias
o ciclo das marés
e o teu corpo fluido
ainda hoje é um deus
à semelhança de um sopro
uma sombra linda

na claridade das águas

sexta-feira, 10 de julho de 2009

POR ENTRE OS DEDOS




Deixámos um rasto
fluorescente no escuro
para as aves se guiarem

Quase indecifráveis
marulhámos sussurros
sem preocupações de chamar
grandes nomes às coisas

No princípio éramos assim
polidos como seixos
tão perfeitos
que ainda hoje temos o rosto
esculpido na água

Com a noção clara das noites
brincávamos com as sombras
desenhávamos garatujas
em todos os mastros
soprávamos o vento

Quando demos mais um passo
para ultrapassar o tempo
obsessivos pela lonjura
recolhemos a outra dimensão
dos teus cabelos brancos
à solta
por entre os dedos

sábado, 4 de julho de 2009

PARA LÁ DO AZUL


Aqui tão perto dos infinitos
no ponto mais distante do deserto
presos por um fio
a meio da ponte
ainda hoje celebramos
as margens
para escrever no azul
metáforas trabalhadas na água
palavras brancas

Ainda hoje
temos o corpo dividido
em pequenos deuses
mas quando partimos
num barco em flor
sonâmbulos como potros
do chão firme das espumas
erguem-se aromas incríveis
na mais transparente verticalidade

Descobrimos
que para lá do azul
talvez ainda seja mar

domingo, 28 de junho de 2009

O TRANGALHADANÇAS

olbinski

A pedido dos monges da Arrábida foi construída uma fortaleza para proteger o litoral. A vida pode ser uma surpreza. A fortaleza, hoje museu oceanográfico é uma referencia no corpo da serra.

Deslumbrados com o património florístico e os monumentos geológicos deste sopro da natureza, percorremos magestosas paisagens na bio-diversidade deste ecossistema.

Desaguámos na enseada do Portinho, numa das mais belas baías do mundo, no espaço poético de Sebastião da Gama.

A doce Arrábida debruça-se abrupta em madeixas de verdes até afagar o rio azul, à vista de roazes e finíssimas areias.

Na esplanada de um restaurante, com os olhos nos olhos dos peixes e dos albatrozes, distribuíamos miolo de pão, saboreávamos salmonetes, nascidos, crescidos e baptizados no Sado.

Não fora a exploração desastrosa da alma e do corpo da serra para a produção de cimentos, uma ferida que sangra os olhos, mais a recente memória da incineradora de lixos tóxicos em nome do mercado de capitais, estaríamos sem máculas num pulmão que respira.

- A serra queixa-se do trangalhadanças.

Na mesa ao lado um sujeito de cabelo grisalho e nariz ponteagudo, tresandava a brilhantina. Levantou um braço, limpou-se a um guardanapo de papel e questionou-nos com voz falsete.

- Trangalhadanças? Estão a falar comigo?

- Naturalmente sr engenheiro.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

À PERGUNTA DO MAR



Estava com os olhos presos
no espelho do rio
quando as margens
se moveram
com aves a acenarem
famintas de um sinal
para fluirem

Das águas submersas
o coaxar dos remos
regressou à tona

Os saveiros passaram
a andar num rodízio
de memórias

Bastou libertar um pó
para desprender os olhos
partir para a faina

à pergunta do mar

terça-feira, 16 de junho de 2009

ROTA NAVEGÁVEL



Não sabíamos que os rios
podiam cair dos céus
sem deixarem de ser água
mas quando te vi
tão livre líquida quase humana
a moldar arestas
vesti a pele das aves
para descobrir o sentido do voo
a voz abrupta dos violinos

Adentro prisioneiros com destino
num instante de chuva
a desaguar por sobre as pedras
eternos e frágeis
compreendemos o sopro do vento
contra o vento

começámos a construir
a pulso
gota a gota
uma rota navegável

sexta-feira, 12 de junho de 2009

MILITANTES DA VIDA

Alvaro Cunhal
Vasco Gonçalves

Eugénio de Andrade

A vida oferece-nos exemplos magnânimos de cidadãos íntegros que se evidenciam pela entrega a causas comuns e marcam gerações.
A 11 e 13 de Junho de 2005 - três militantes da vida, legaram-nos valores que são património inestimável para todos os amanhãs.
Presto-lhes esta modesta homenagem.
Não deixemos morrer os nossos mortos.