Aparentemente só uma lágrima fria e um súbito nevão assumem a responsabilidade pelo bloqueio às vias alternativas.
Mesmo assim - atraídos pela música de Strauss que irradiava pelas frinchas de uma janela, atrevemo-nos a desaguar nas redondezas da mesquita.
Sentado na caixa de polir, meio desconchavada, fazia sorrir os sapatos passageiros e os seus braços estavam cansados do vai-vem e as suas mãos eram pomada e os seus dedos tremiam e o seu desejo era dar um estalido com o trapo, capaz de arrancar uma palavra de conforto.
Com olhos de esmeralda a rolarem pelo chão - em busca de outros sapatos, só via pés descalços - e a caixa gemia.
- Estou a conhecê-lo?
- É bem possível - eu não fugi de mim. Retirei-me temporáriamente para este exílio, porque sois um país pobre e aparentemente livre.
- Os pobres não são livres.
- Depende do seu código de valores. Eu combato paraísos artificiais e em nome da minha liberdade, beijo uma flor, engraxo-lhe os sapatos.
- Estou a conhecê-lo.
- Talvez. Quando um homem é notícia após ser agredido por quem nos ama, só a poesia pode decifrar a metáfora. Talvez seja o seu caso.
- Não insistas.
- Posso insistir?
- Pode.
- O senhor é Muntazer al- Zaidi.
- Meu caro desconhecido, quando Galileu, em defesa da sua teoria, jurou que a Terra girava em torno do Sol, foi condenado. Só muito mais tarde o Vaticano admitiu ter errado na sua condenação.
- O senhor morde nos sapatos do dono.
- Não. Eu estou orientado para Al-Aqsa. Em nome da minha liberdade, só me vergo para beijar uma flor ou engraxar-lhe os sapatos. Até ser outro dia.
Retirámo-nos - ainda com os acordes de Strauss.