sábado, 29 de agosto de 2009

ONDE NIDIFICAM AS MARÉS


A praia estava tão só
de tudo
que mais parecia uma casa vazia

até os azuis desmaiavam
num tresmalho de céus

Nem um barco, uma asa,
uma brisa, um pó

Só uma breve espuma
adocicava as areias tatuadas

Nesta elegia de silêncios
em repouso
as águas lamberam
os teus últimos sinais
mas não o mirífico lugar
onde se despem e nidificam
as marés

sábado, 22 de agosto de 2009

O PÃO CRESCEU NAS NOSSAS BOCAS


Ver-te assim tão indecifrável
nos contornos e nas arestas
ancorada nas marés
em chama viva
a entrar pela casa vazia
sem desistires do silêncio
a resistir mesmo quando doem
os passos e as pontes
fez-me pedir ajuda
a um cântaro de água fresca
às pedras que cantam e tropeçam
nos pés das videiras

Foi assim que nos despimos
e vindimámos
para os barcos cumprirem
o seu efémero destino

As uvas morreram nas tuas mãos
mas o pão cresceu nas nossas bocas

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A CASA VAZIA

Nem as tuas ancas são como os barcos
nem eu vejo
no teu corpo
uma casa vazia

mas hoje
quando o vento nos bafejou
tão breve
reparei como o chão se desnudou
para os barcos desenharem na água
o baloiço das tuas ancas
adormecerem o perfume
em colares no teu corpo
e a luz arder a prumo
antes que a chuva se desmande
neste desassossego
de lábios e areias
Ao longe a casa vazia
com portas abertas
janelas escancaradas
para quando chegarmos
tudo fique mais azul
em cada sílaba

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A VERDADE DOS SONHOS


"Para ser grande, sê como és. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa, põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a luz toda brilha, porque alta demais. "
- Fernando Pessoa.
- Não, Ricardo Reis.

- Estávamos como estamos, num país onde os cães que não mordem se desesperam a ladrar.
- O Dique não ladra.
- Mesmo assim o país, com olhos tristes, ri de cócoras.
- Fernando Pessoa foi um místico.
- Vamos dormir?
- A esta hora todos dormem?

E foi assim neste diálogo de merda, quase institucional, que exaustos da amálgama de sons imperfeitos nos recolhemos ao paraíso dos silêncios tresmalhados.
Aqui - beneficiamos dos improvisos sábios do Dique, do generoso galinheiro com vistas para a rega automática, da serenata das folhas quando o vento lhes assobia.

Um dia parámos as bicicletas numa azinhaga, à porta de uma placa tosca, de madeira, que anunciava - "vendo patos".

Adolescentes como Ricardo Reis, comprámos uma pata com as suas dez crias. Todos mudos para não interferirem no belo canto do galo - um tenor ancião que subia ao poleiro para exibir a voz quando a luz acontecia. Na lua cheia chegava mesmo a enrouquecer, mas o país que o aplaudia, não votava.

Nesta harmonia aparente os patos cresceram e inesperadamente começaram a depenar as galinhas.
O galo deixou de cantar e o Dique esteve na eminência de ladrar mas conteve-se para não se confundir com o poder.

A noite estava cerrada quando decidimos intervir. Transportámos os bancos da cozinha para o galinheiro, um violino e o meu mais recente livro de poemas.

Patos de um lado, galinhas do outro. Nem um piu, um pestanejar de olhos. Só um ressoar de penas para aconchego das asas.

À porta do galinheiro o Dique, imponente - observava, sem dizer uma palavra.

- Começas tu com os poemas?
- Prefiro tocar violino.

Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem.

O Dique levantou a cabeça e fez-se luz. Começou a lamber a lua cheia e o galo despertou - começou a cantar.

Retirámo-nos pé ante pé para não perturbar o concerto.

No dia seguinte a pata tinha sido galada pelo tenor. As crias visivelmente reconhecidas afagavam as penas das galinhas, que punham ovos nos sítios mais incríveis.

- Acorda. Acabei de sonhar uma história.
- Outra vez o Ricardo Reis?
- Não a outra.
- Já ouvi essa história e continuo a não entender como é possível um cão de barro, numa noite cerrada, lamber a luz da lua cheia.

Onde está a verdade dos sonhos?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

QUE FARÁS DE TI ?

claude monet
Ainda não estávamos no tempo das vindimas, nem da fuga das andorinhas. Estávamos a regar uvas de mesa para te oferecer numa bandeja de lua cheia - mas tu estavas no paraíso dos silêncios a aprender, a prender ou a soltar amarras de barcos, a voar com o próprio voo ou a cortar asas aos pássaros, sem teres espreitado o belo precipício das lindas tempestades - onde só cantam livres alguns fios de música quando lhes morde a voz.
As uvas estavam verdes, o tempo incerto e o chão íngreme já te desafiava em revérberos num turvelinho de rotas.
Quando vencemos o teu cordão umbilical, despertámos para uma certa revolução de estrêlas e ninguém sabia o que era uma revolução de estrêlas. Talvez um dia saibas que as estrêlas podem brilhar no chão que pisamos, conforme as marés - que todas nascem, crescem e regressam como pêndulos a outras florações.
A lua não estava cheia, as uvas estavam verdes, as andorinhas só regressavam à noite e tu deste um grito que estilhaçou todos os silêncios.
Não foste um silvo de barco, nem um mar a rasgar escarpas, nem sequer o delicioso florir de uma araucária. Foste tu e já é tanto.

E agora? Que farás para a água te lavar os pés? Que farás para o mar não te abandonar? Que farás para te conquistares? Que farás para as uvas amadurecerem e as andorinhas regressarem?

Que farás de ti, pelas outras estrêlas.


domingo, 2 de agosto de 2009