terça-feira, 11 de agosto de 2009

A VERDADE DOS SONHOS


"Para ser grande, sê como és. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa, põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a luz toda brilha, porque alta demais. "
- Fernando Pessoa.
- Não, Ricardo Reis.

- Estávamos como estamos, num país onde os cães que não mordem se desesperam a ladrar.
- O Dique não ladra.
- Mesmo assim o país, com olhos tristes, ri de cócoras.
- Fernando Pessoa foi um místico.
- Vamos dormir?
- A esta hora todos dormem?

E foi assim neste diálogo de merda, quase institucional, que exaustos da amálgama de sons imperfeitos nos recolhemos ao paraíso dos silêncios tresmalhados.
Aqui - beneficiamos dos improvisos sábios do Dique, do generoso galinheiro com vistas para a rega automática, da serenata das folhas quando o vento lhes assobia.

Um dia parámos as bicicletas numa azinhaga, à porta de uma placa tosca, de madeira, que anunciava - "vendo patos".

Adolescentes como Ricardo Reis, comprámos uma pata com as suas dez crias. Todos mudos para não interferirem no belo canto do galo - um tenor ancião que subia ao poleiro para exibir a voz quando a luz acontecia. Na lua cheia chegava mesmo a enrouquecer, mas o país que o aplaudia, não votava.

Nesta harmonia aparente os patos cresceram e inesperadamente começaram a depenar as galinhas.
O galo deixou de cantar e o Dique esteve na eminência de ladrar mas conteve-se para não se confundir com o poder.

A noite estava cerrada quando decidimos intervir. Transportámos os bancos da cozinha para o galinheiro, um violino e o meu mais recente livro de poemas.

Patos de um lado, galinhas do outro. Nem um piu, um pestanejar de olhos. Só um ressoar de penas para aconchego das asas.

À porta do galinheiro o Dique, imponente - observava, sem dizer uma palavra.

- Começas tu com os poemas?
- Prefiro tocar violino.

Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem.

O Dique levantou a cabeça e fez-se luz. Começou a lamber a lua cheia e o galo despertou - começou a cantar.

Retirámo-nos pé ante pé para não perturbar o concerto.

No dia seguinte a pata tinha sido galada pelo tenor. As crias visivelmente reconhecidas afagavam as penas das galinhas, que punham ovos nos sítios mais incríveis.

- Acorda. Acabei de sonhar uma história.
- Outra vez o Ricardo Reis?
- Não a outra.
- Já ouvi essa história e continuo a não entender como é possível um cão de barro, numa noite cerrada, lamber a luz da lua cheia.

Onde está a verdade dos sonhos?

26 comentários:

Anónimo disse...

Não existe perda de dignidade, mas esquecimento daquilo que fomos ou somos. E às vezes é preciso uma luz especial, um jeito de enxergar as coisas diferente, para que possamos novamente ser o que somos, nunca menos.
Onde está a verdade dos sonhos? Está naquilo que acreditamos.

lino disse...

Sonho lindo!
Abraço

jrd disse...

Fabulosa fábula.
O Dique sabe bem, agora, porque é que há patos que começam a cantar
de galo.

mariabesuga disse...

A verdade dos sonhos está dentro dos próprios sonhos e quantas vezes só aí mesmo.

Nesta estória também e é a única maneira de explicar que um cão de barro consiga lamber a lua cheia.

Tal qual a razão que deixa que uma gaivota se apaixone por essa mesma lua cheia. Mas essa é outra estória. Uma das que eu vou sonhando cá deste lado.

Um abraço.

Maria P. disse...

Será tudo um sonho, até os sonhos...

Bjos*

L e n a disse...

Num sonho tudo pode acontecer..
Tanta imaginação neste texto...
Parabéns !

um beijo

Ana Paula Sena disse...

Onde está? Também pergunto :)

São tantas as vezes em que o silêncio é de ouro. Só poesia, violinos, natureza, a terna e autêntica companhia dos animais; é isso apenas o que nos aconchega o sono...

maré disse...

eu não sei.
gostei demais desta estória/metáfora.

e de como sabes dar a volta e transformar a acidez em poema!

um beijo

mfc disse...

está no acreditar... e conseguir!

Anónimo disse...

... e os teus "compagnons de la nuit e du jour"... continuam a inspirar-te, a fazer-te respirar ... e a servirem-te de musas... para prosas e poesia... brilhantes!

Bravo, meu irmão..."compagnon de route de la vie" ... toujours!!!!

Ab.- EL

poematar disse...

Adorei edta prosa. Corre bem. A verdade dos sonhos está na sua concretização serena e determinada, nem que leve a vida inteira. Ainda estou de férias. Vou aparecendo ao de leve. Um abraço.

Graça Pires disse...

Um sonho que é uma gostosa metáfora...
Beijos.

utopia das palavras disse...

Pertinente a pergunta!!!!

Um texto de sonho, magistral!

Beijo

mariam [Maria Martins] disse...

Eufrázio,

belíssimo! gostei tanto da imagem 'Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem'

obrigada por partilhar 'sonhos'...

um abraço e um sorriso amigo :)
mariam

Justine disse...

Um "Animal Farm" alucinado, virado de pernas para o ar. Deve ser do calor...

samuel disse...

Só sonhando se pode tentar saber...
Mas que este é um fantástico sonho, é!

Abraço.

Graça disse...

É um prazer imenso ler-te!



Um beijo meu e bom fim de semana

maria josé quintela disse...

excelente!!!





beijo.

Fernando Samuel disse...

Excelente texto!

Um abraço.

Manuel Veiga disse...

na subversão do texto. e do contexto...

(digo eu. com sonhos um tanto ou quanto calcinados...)

excelente texto.

abraço, Poeta.

Luís Galego disse...

um violino e o meu mais recente livro de poemas.

e o violino e o poema fizeram a diferença...

um abraço

Arábica disse...

A verdade dos sonhos está sempre nos dedos que os traduzem.

Beijos, bom domindo quáquá. :)

antonior disse...

Os sonhos são o único local em que a verdade acontece.

Na vigília, a verdade é comprometida pelas fronteiras da física e pelas barreiras da mente.

Só os cães de barro podem lamber os astros, e parar o momento no tempo, para serem imortais...

Abraço

P.S.-Respondi ao seu comentário, no meu post anterior, na própria página em que comentou

Adriana Riess Karnal disse...

Os sonhos não mentem, mas disfarçam...

Licínia Quitério disse...

Uma crónica sonhada, é o que é. E fizeste muito bem em transcrevê-la. Está lá tudo, como nos sonhos :)

Anónimo disse...

Ao ler esta linda
prosa poética
consegui...
sonhar
rever o cão de barro
assistir ao concerto
saudar tudo
e todos os sonhos...
subir até ao céu
tocar a lua
e adormecer feliz!!!!

princesa