sexta-feira, 6 de julho de 2007

SIM SENHORA MINISTRA

desenho de Mário Filipe


Inconformado mas tranquilo navegava descontraído ao sabor da música de Nat King Cole, pelas ruas da net. A sorver um inestimável cigarro naveguei, naveguei, até entrar por acaso numa sala de conversa, em mesa redonda. Cumprimentei com um olá abrangente. O forum pareceu-me uma récita de finalistas e alguém entretanto respondeu-me com voz terna e macia com outro olá.Trocámos moradas e um outro dia cliquei - zebra@ mail.pt.
Acordámos um encontro na pastelaria Versalhes.

Era sexta feira,dia das cidades sem carros e na avenida da República foi comovedor apreciar um punhado de gente a correr como espermatozóides a respirarem finalmente pelos pulmões - de bicicleta de patins, a cavalo, ao pé coxinho - vitoriosos, saltitantes, castos e inocentes.
Ouvi alguém recordar que o vento é o ar em movimento.

Na verdade o governo nas varandas de São Bento, em estado critico de parto orçamental, aplaudia-se a si mesmo enquanto o ar quimicamente puro entrava e saía nos amplos salões.

Estávamos nos últimos lampejos do verão quando me dirigi ao micro clima da Versalhes que distinta luzia nos florais dourados, nos tiques barrocos da fauna residente, no brilho cristalino dos espelhos, na nata das conversas, nas minhas lentes de contacto.

Às dezassete em ponto, uma galáxia de estrelas candentes entrava na pastelaria. Dirigiu-se à minha mesa. Parecia uma papoila. Não andava deslizava, volátil, aparentemente frágil mas insinuante. Vestia seda natural exibia discretos viveiros de rosas polícromas - cravos nem um.

Alta, amendoada, olhos felinos nuca rapada - calou a Versalhes e eu confesso que fiquei com a ideia de ver uma personagem conhecida.

Cumprimentámo-nos com alguma solenidade. A sua mão ou a minha tremia humedecida.

Tomámos o chá em porcelana bago de arroz e falámos, falámos - ternos, criativos, inocentes.

Conclui que talvez pertencesse à comunidade de Santo Egídio, empenhada na cultura para a paz, na mediação internacional - uma frente organizada e independente - mas - da total confiança política do Vaticano.

Inesperadamente fui convidado para visitar a piscina interior de um hotel. Com a naturalidade de quem procura substância para uma crónica, aceitei o convite.

Desviámo-nos um pouco da Avenida da República, apanhámos um táxi, chegámos ao hotel - obviamente um cinco estrelas.

No lancil, uma jovem andrajosa raspava as cordas de um violino lacrimoso, rezava por uma moeda, num debotado copo plástico da coca cola. Parámos enquanto ela olhou a rapariga. Com os dedos esguios retirou um brinco da orelha que deixou maternal no copo das esmolas.

Com o mesmo sentido cooperante deitei a mão ao bolso do casaco mas só encontrei um auto-colante contra a co-incineração na serra da Arrábida.
Entrámos. No átrio da piscina a música de fundo oferecia Nat King Cole

Pedi um Cuty Sark e a minha companheira, como se estivesse na intimidade do doce lar. começou a despir o vestido de seda, a espargir um ténue perfume a rosas e a revelar um lindíssimo fato de banho.

As riscas de zebra, perfeitamente selvagens, listavam-lhe todo o corpo amendoado. Colada à pele penetravam-lhe os ângulos, as reentrâncias, os espaços bojudos, os precipicios -- das unhas dos pés, até à nuca rapada.

Por dentro não vi nada de muito significativo, mas quando - lenta e solenemente se aproximou da água, reparei que não tinha uma única peça de roupa vestida. Numa nádega era evidente a assinatura do pintor.

Rodando o pescoço, óptimo para o sinistro tempo da guilhotina, olhou-me fixamente - com outros olhos. Estava triste. Revelava uma profunda solidão interior - e eu inquietei-me.

Sempre a fixar-me deu uns passos e permitiu que uma lágrima solta, desamparada, tingisse a água da piscina. Mais me inquietei quando não conteve um breve sorriso nervoso e me interrogou, terna e com voz macia.
Fui remodelada, sabia?
Compreensivo e terno, respondi

Sim senhora ministra

23 comentários:

jrd disse...

Sim senhor escritor!
Trata-se de um texto magnífico.

Maria disse...

Belíssimo texto, este.... belíssimo....

Um abraço

Luís Galego disse...

Este texto é simplesmente fabuloso, merecedor de ser incluido em qualquer antologia de crónicas. Fiquei suspenso desde a primeira frase e boquiaberto com o epilogo. Eu que sou fanático da arte de bem contar uma história em poucas linhas, lamento que no nosso país não se invista muito nos contos. Muito me agradaria ver publicado um livro desta natureza pelo E.F (mar arável)...Caminho ou outra editora de que estão à espera para publicar este grande homem da palavra?

Cristina Gomes da Silva disse...

Gostei muito.

clara branco disse...

Li de um só fôlego. Muito cativante. Que tal um livro? Penso que domina muito bem a palavra escrita.

Cristina Gomes da Silva disse...

Bom dia, há uns tempos atrás, ainda não conhecia este "Mar", escrevi, lá onde "ninguém lê", este texto: http://ninguemle.blogspot.com/2007/05/uma-vida-quase-inteira-na-escurido-das.html
Mesmo sem o saber, o que lá está contado também foi possível graças a si. Obrigada e boas escritas

CCF disse...

De facto, excelente...!
~CC~

C Valente disse...

Andando a navegar, por aqui passei. Sim, gostei, excelente, voltarei
Saudações

Anónimo disse...

ahahahahah, desculpe, tive que me rir...

Tem um desafio na minha "toca".... se quiser aceitar ;))

Anónimo disse...

só volto a abrir o piano no fim do verão...




bom dia...


_______________

imf.

un dress disse...

belíssima escrita!!

e... surpreendente...!





beijO

Anónimo disse...

Concordo em pleno com o Luís Galego!
Por que esperam as boas Editoras para investirem neste tão excelente escritor?

Alexandre disse...

E eu soube agora mesmo que nalguns serviços públicos de saúde de Lisboa as coordenações foram todas substituídas por miúdas novas e bonitas... mas que não sabem o que hão-de fazer com as novas funções... Os mais velhos, agora destituídos sem saberem porquê ficaram desamparados... parece que os job for the girls agora têm novas nouances...

Sobre o texto e o desenho, fantásticos, complementam-se. As palavras do Luís Galego dizem tudo!

Um abraço!!!

inominável disse...

tens a certeza que foi compreensão? acho que o sarcasmo anda sempre lá perto...

Manuel Veiga disse...

estás cheio de sorte. só me saem duquesas desempregadas...

excelente texto. abraços

Mar Arável disse...

A TODOS AGRADEÇO AS APRECIAÇÕES

Anónimo disse...

Belissimo texto, como todos este espaço, com mais tempo voltarei...

Doce beijo

Isabel Filipe disse...

Sublime o texto.
É uma arte saber-se escrever com ironia. Parabéns por isso.

Bjs

Vladimir disse...

sem palavras...fiquei preso da primeira palavra até à ultima...

E para si, o que é a tolerância? Acha que vivemos num país tolerante?

Menina Marota disse...

Vinha em busca de mais palavras... mas vejo que não tem aparecido por cá...
Bj

Páginas Soltas disse...

Passei... Reli e gostei! :)

Vinha em procura de mais textos como este...

Bjs
Maria

Mateso disse...

Deambulando,cheguei aqui .Procurando ser sucinta direi que, tens na ponta da caneta o dom de bem escrever crónicas do mundo.És conciso e preciso.
Parabéns. Voltarei sempre.

pé descalço disse...

Eufrázio

Eu tenho um pouco a mania de criticar construtivamente tudo e todos, apontando aqui e ali, uma ou outra falha e possiveis alterações ou melhores soluções...mas o que é facto é que o seu texto deixou-me completamente desarmado!!!
Está irrepreensivel...e revela talento como poucos!

Parabéns

Um abraço