quinta-feira, 19 de abril de 2007

NA MALHADA DOS PORCOS


desenho de Mário Filipe








Lenta como o amor dos bons amantes,a madrugada despontava


quando me fiz ao caminho do Alentejo.


O céu intangível,aparentemente igual para todos,mostrava-se naquele dia - plano- longínquo,viçoso de arco íris.O sol gatinhava resplandecente por entre farrapos de nuvens frágeis,desmaiava adolescente num chão com cheiro a ervas e pássaros silvestres,numa terra de perder os olhos e a vista.


Nestas paragens,é possível ainda hoje escutar - com vagares e


lucidez - todos os sítios do silêncio,a limpidez dos sons povoados de montes e ribeiros,o timbre do voo por sobre a ondulação das searas-


-amar a sombra das azinheiras,o pó finíssimo das azinhagas,tingir a


boca com mãos cheias de amoras.Nestas paragens é possível ler


pelas janelas das casas,os olhos das pessoas.


Amo o Alentejo - até os seus defeitos.


Naquele dia estava tudo acordado,com o meu amigo Pêra Verde -


um velho ganhão ,estatura meã,entroncado,ventre generoso,rosto


vermelhão,boné às riscas com pala sobre os olhos e polegar da mão


esquerda espetada no cinto das calças de ganga - um homem simples


sábio - um coração de oiro.


Chegado à aldeia de São Mansos,onde o povo - por fé - não frequentava as missas do senhor prior,procurei a Junta de Freguesia.Em frente - monumental e paciente ali estava ela - a Mimosa.


A Mimosa,uma burra que o meu amigo destinou para me transportar,por azinhagas sem fim,até ao local do encontro.Um belo


animal.Filha de família residente,propriedade do Pêra Verde,conhecia o caminho tão bem como as suas patas.


Passei-lhe as mãos no pêlo castanho clarinho,escovado,impecável.Bonita burra.Uma risca branca,


evidente- bordava-lhe os flancos.Uma princesa.Pestanas fartas e eriçadas,uma madeixa na nuca por entre as orelhas espetadas,


olhos gulosos,ternos,meigos,infinitos.


Ao primeiro contacto mais formal e objetivo enrolou as lindas beiças,mostrou a alva cremalheira com dentes certinhos e palitados


Deslumbrado contei-lhe um segredo ao ouvido e ela deixou.


Disse-lhe que íamos comemorar o 25 de Abril.


Democrática e compreensiva - evacuou com satisfação como é da sua natureza e eu dei-lhe favas,que ruminou em festa,ensalivando com


prazer.


Assim identificados,montei-me - e partimos,amigoscompanheiros


e camaradas.


Olhei de novo o céu e pareceu-me de facto que até no Alentejo,


só aparentemente o céu era igual para todos.Concluí em pensamento,para não perturbar a Mimosa - meu deus,como não é fácil ser alentejano no Alentejo.Mesmo assim parece que ouvi a Mimosa -


nem na terra nem no céu.


De quando em vez a Mimosa troteava - mas quando decidia andar a passo,bamboleando as ancas,talvez os quadris - baloiçava-me.Só


faltava contar-me histórias de embalar.Assim fomos caminho fora e de tal modo que não resisti a esticar-me completamente por sobre o seu


pescoço.


A Mimosa - por gentileza,prazer ou consentimento,pareceu-me ter


gostado.Na verdade constatei que começou de novo a festejar.


O meu amigo Pêra Verde já me tinha esclarecido -


--Compadre - a burra é mais inteligente que uma cadela de raça.


No pó finíssimo da azinhaga lá fomos andando.Para estímulo,umas


vezes esfregava-lhe a madeixa,outras falava-lhe ao sentimento - Não


fosse o povo com militares subalternos,não fossem os democratas


em luta durante décadas,não tinhamos liberdade.Sabes Mimosa,o


desmantelamento da essencia da revolução dos cravos merece respeito e uma reflexão dos que a viveram e dos que dela beneficiaram.


A Mimosa abanava as orelhas - com o rabo sacudia as moscas.


Porque não evacuou desisti da conversa.


Por fim chegámos ao monte.Estávamos na Malhada dos Porcos


Bem disposto o anfitrião recebia os amigos com abraços e vivas ao 25 de Abril.Uma pequenina bandeira nacional flutuava no suporte de uma das orelhas do Pêra Verde.


Compadre - a Mimosa portou-se bem?Costuma ser um belo colchão de molas.Nas tetas da mãe,já eu mamei.


No terreiro,o Farrusco,um valente pata negra,inocente,estava preparado para o sacrifício.


Após os preparos - Farrusco morto,musgado e amanhado - noite fora,em festa rija - a melhor carne alentejana foi comida.Molejas,cachola,azeitonas pretas,paão fresco,borba tinto e anedotas picantes.


O tempo passava ao rubro.No auge do convívio o anfitrião entendeu falar - a sério,com voz grossa,pausada.Ergueu-se como pôde e disse -


- O mal desta república é o desemprego e a falta de segurança das pessoas.Há dias fui assaltado.Roubaram-me um tarro,um mocho,um cocho,um avio de linguiças e morcelas.


O momento tornou-se solene e o dr Galandim,conhecido na terra por Zé Milhano esclareceu o plenário


- Queridos amigos nos tempos que correm todos somos doutores e engenheiros.Nesta república tornou-se corrente qualificar a criminalidade actual de complexa,transnacional,consistentemente


monotorizada,tecnologicamente avançada,socialmente insidiosa,


acrescidamente violenta,estruturalmente actuante,economicamente poderosa e politicamente verrinosa.


Após este desaforo do dr Galandim,Pêra Verde,para manter o nível do encontro clamou de novo pelo 25 de Abril,olhou de soslaio para


os restos do Farrusco e afirmou categórico,simples e sábio,


como estivesse no parlamento nacional


- Desgraçado do animal que passa pela goela dos outros.


Apoiado por todos começamos de novo a cantar - até ao romper da aurora.


4 comentários:

Maria disse...

Uma forma diferente de comemorar Abril...
Gostei da Mimosa, gosto do Alentejo...

Páginas Soltas disse...

Uma narrativa, que desde o principio ao fim...deixou-me com os olhos marejados de lágrimas, da grande comoção que senti...ao ler frases, palavras, alcunhas...os cheiros e os sabores dessa Terra abençoada que foi o meu berço!

Ai Alentejo...Alentejo
Vou percorrrer-te de lés a lés
Terra que me viste nascer
Faculdade do meu saber
Como poderei esquer!

Obrigada...pelo texto!

Abraço

Maria

un dress disse...

belo. bela escrita...

Anónimo disse...

Excelente retrato do Alentejo e sua gente! Alentejo, terra que me viu nascer, terra que me viu crecer!
Terra onde o silêncio nos acorda e nos move!
Terra de cantares e bailados do melro, do rouxinol e da cotovia!
Terra que continua a conquistar corações, sensibilidades e paixões!
...
Felizes os que inalam o perfume das flores silvestres e partilham com o povo!