quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

DEZEMBRANDO




À míngua de pássaros e outros relâmpagos subimos a pulso a nossa escarpa preferida 
para ouvir íntegro o vento inteiro 
para ver sublimado o nosso barco de remar

num abraço
eternamente a respirar
ateados à passagem demais um ano


eufrázio filipe
(reconstruido)

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

TUDO PELO MELHOR





Por exclusão social ou sinal de lucidez, nem todas as famílias são um presépio

Foi assim que pensei

quando vi na esquina do prédio uma senhora com uma criança ao colo 
a pedir esmola e a desejar boas festas a quem passava. 


eufrázio filipe

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

VERSOS OU QUASE NADA






Na minha escarpa
florescem ventos relâmpagos
e gestos

não como são
mas como os vejo

aqui
quase tudo acontece
no pestanejar de uma vírgula

mãos cheias de mar
mais azul
que os céus
voejam metáforas
para dar comer aos pássaros

e assim me deito
nos teus retratos
a fazer versos 
ou quase nada


eufrázio filipe

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

OLHOS REMOÇADOS





No tempo em que crescíamos
a noite bramava tão parda 
que nem parecia noite

de súbito um frémito de luz
pestanejou nos mastros dos barcos

o mar restolhou

e eu vi claramente 
os teus olhos remoçados
alumiarem as águas

após tantos relâmpagos vividos
julgavas estar preparada
para voar

mas os pássaros ainda aprendiam
a ter asas


eufrázio filipe

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

ESPAÇO PARA CANTAR






Nesta aldeia
de mares imperecíveis
e sábios tristes
íntegro um pássaro do alto
entendeu por bem
atiçar o fulgor dos timbres
regressar ao  cais
soltar os barcos
e partir
nas cordas vocais
de uma guitarra

Nesta aldeia
refúgio
à flor das águas

ainda há espaço para cantar


eufrázio filipe

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A ESSÊNCIA DA LUZ






A noite não dorme
porque se ama
e deseja

inesgotável
desponta vertebrada
move tempestades

às mãos cheias
dá de beber às fontes
a essência da luz

Tantas são as noites
que não dormem
contadas pelos dedos

a desbravar caminhos
conhecidos


eufrázio filipe

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

VIGÍLIA AO IMPROVÁVEL





Quando te despiste em flor
e revelaste a nudez
já despontavam as camélias

não por dádiva dos céus
na vertigem das sombras
muito menos porque o mar
se ergueu
num sussurro de azuis

tão só depurada
trazias gestos musicais
a noção de um rio
que se demora nas margens

Quando te despiste
quase inocente
numa povoação de sílabas
não desnudaste
o mais íntimo da pele

ficaste em vigília ao improvável
tão perto dos mastros
onde dardejam pássaros
e profanam metáforas


eufrázio filipe

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

PALAVRAS VERTEBRADAS





Benditas as palavras vertebradas
silaba a silaba
o canto das folhas desamparadas
no alpendre
o uivo dos cães
a clarear sombras

este perfume de mostos
chuva lábios e pedras

este marulhar desabrido
à nossa porta
na livre circulação do vento


eufrázio filipe

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

QUE FIZESTE DAS NOSSAS FLORES?





As árvores viajam
na sombra dos verdes
um sussurro de folhas
e tu foges dos ramos

amanheces tão distante
que nem os meus olhos
descobrem os teus gestos

as árvores viajam
onde acontece a cor do fruto
no chão
e os pássaros sem amos
deixam que a sombra se rebente

meu povo
que fizeste das nossas flores?


eufrázio filipe

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

COM POEMAS NO REGAÇO




Folha ante folha
eras um rio de mágoas
inclinada para o mar
um presságio de pátrias tresmalhadas
vertiginosa e bela
a içar neblinas
nos mastros mais altos

só não sabia
que ainda estavas em desassossego
por outros inocentes horizontes
exausta da cidade
e dos pássaros às migalhas
no chão das esplanadas

Para espanto dos cães
começaram a levantar-se
as memórias da araucária
e eu lambi-te as lágrimas
os cabelos brancos
os vendavais

Folha ante folha
foi assim que te vi
no espelho das águas
desalinhada
com  poemas no regaço


eufrázio filipe

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

FOLHAS PERSISTENTES


                                                            magritte



Celebro no mais íntimo da pele
a exuberância aprumada
da árvore ao fundo
quando acorda a cantar
e adormece com os pássaros
no outro lado do cais

quando desperta no deserto
esculpe grãos de areia com rosto
e se levanta nas dunas
contra o vento

celebro os contornos da luz
as esquinas e os becos
no rasgo lúcido de um traço
quando se desnudam na tela
espaços em branco
mãos vertebradas por todo o corpo 

frutos silvestres
folhas persistentes
a vasta sede


eufrázio filipe

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

CÍRIOS





Nas arestas da escarpa
aprendemos quase inocentes
a arredondar pedras
para não ferir o voo dos pássaros

caminhamos num abraço de limos 
ao som das marés
e descobrimos debaixo da pele
que nos abriga
tanta luz
por desbravar

resistimos nas areias movediças
desvendamos rotas conhecidas
atiçamos relâmpagos

círios
mastros
que se levantam


eufrázio filipe

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

BEIJÁMOS AS PEDRAS







Lá onde todos os azuis
se reúnem para cantar
e os olhos cegam
num espelho de águas
dulcíssimas
nem sempre acontecem
pautas de timbres

mas tu trazias no corpo
um rasto de asas

na voz um sinal
que despertam contidos silêncios

e foi assim

quando soltaste os pássaros
neste jardim de corais

em pleno voo
beijámos as pedras


eufrázio filippe
2015

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

NO CHÃO DAS ÁGUAS






Na exuberância dos sapais
nidificam garças
indiferentes ao ciclo das marés

tão breves
num verso
sedimentam o rio

Quando entardece
resgatam memórias
banham-se no chão das águas

quase humanas 
espargem cores
fáceis de explicar



eufrázio filipe


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

DULCÍSSIMA





Por falta de um sopro
no marasmo do cais
adormeciam barcos

banhavam-se em salivas
à vista dos mastros
quando amanheciam 
sílaba a sílaba 
junto ao pomar dos medronheiros
numa cadência de asas e passos

e tu adocicavas nas margens
imaculadas claridades

Com o tempo verifiquei
que eras tu 
regressada ao que sempre foste
vertebrada metáfora
a folhear um compêndio de azuis

eras tu dulcíssima
tão líquida por entre os dedos
que adormecias os barcos


Eufrázio Filipe


terça-feira, 4 de setembro de 2018

MAREANTES DO VENTO







Crescemos na nudez das pedras

crescemos e desmaiamos
conforme as marés

vertemo-nos líquidos
em caudais de sons
ardidos no sal
no delírio da espuma
por todo o corpo

crescemos na substância das pedras
com asas muito leves

não somos barcos de carregar velas

somos mareantes do vento


eufrázio filipe



segunda-feira, 27 de agosto de 2018

BARCO DE PAPEL






Regressei do longe
aqui tão perto
que nem te posso tocar

barco de papel



Eufrázio Filipe


quinta-feira, 23 de agosto de 2018

HAJA RESPEITO





O nosso José Afonso foi sempre um Homem livre. 
No panteão não seria. 
Haja respeito pela sua vontade. Divulgue-se a sua obra. 


sábado, 4 de agosto de 2018

VOU ALI E JÁ VENHO






O calor dilata os corpos até que chova na boca das sementes

Vou ali e já venho

quinta-feira, 26 de julho de 2018

TUDO ACONTECEU





Esta noite ouvi
um certo rumor
de palavras antigas

apelavam
na vegetação
ao instinto dos pássaros

mas nas paredes da casa
onde nunca se calam 
os teus retratos

estavam reunidas
todas as condições
para salvar o mundo

foi o que fiz

passámos de novo a respirar por guelras
e tudo aconteceu


Eufrázio Filipe

quinta-feira, 19 de julho de 2018

TODOS OS DIAS DESPERTAMOS






Todos os dias conforme as estações
acordava à hora dos pássaros

escancarava a janela
abria os braços
dava um grito para chamar os cães 

descia pedra a pedra
todos os degraus da escarpa
até ao chão das marés
para hastear uma bandeira

enchia um jarro de água
sentava-me na mesa do alpendre
e começava a desenhar
palavras improváveis

Ao fundo
muito para lá da romãzeira
fremiam as águas
não sei porquê
mas fremiam

os cães latiam
e as palavras por uma nesga
espreitavam entre os dedos
como se fosse o fim da história
um paraíso inventado

Todos os dias despertamos
mesmo de olhos fechados


Eufrázio Filipe

terça-feira, 17 de julho de 2018

JOÃO SEMEDO UM HOMEM INTEIRO




Deixou-nos um Homem inteiro

Não deixemos morrer os nossos mortos


segunda-feira, 9 de julho de 2018

A VERDADE DOS SONHOS


                                              René Magritte
                                                       


                                                                                                                                                                                                   
"Para ser grande sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui.Sê todo em cada coisa,põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua brilha, porque alta vive."
-Fernando Pessoa
-Não, Ricardo Reis
-Estávamos como estamos,num país onde os cães que não mordem se desesperam a ladrar. 
-O Dique não ladra
-Mesmo assim, o país com olhos tristes, ri de cócoras
-Fernando Pessoa foi um místico
-Vamos dormir?
A esta hora todos dormem

Foi assim neste diálogo  inventado,quase institucional que exaustos numa amálgama de sons imperfeitos nos recolhemos ao paraíso dos silêncios tresmalhados. 
Aqui beneficiamos dos improvisos sábios do Dique, do generoso galinheiro com vistas para a rega automática, da serenata das folhas quando o vento lhes assobia. 

Um dia parámos as bicicletas numa azinhaga junto de uma tosca placa, de madeira, que anunciava - Vendo patos. 
Adolescentes como Ricardo Reis, comprámos uma pata com as crias. Todos mudos para não interferirem no belo canto do galo - um tenor ancião que subia ao poleiro para exibir a voz quando a lua acontecia. Na lua cheia chegava mesmo a enrouquecer, mas ao país que o aplaudia não votava. 

Nesta harmonia bucólica os patos cresceram e inesperadamente começaram a depenar as galinhas. 
O galo deixou de cantar e o Dique esteve na eminência de ladrar, mas conteve-se para não se confundir com o poder. 

A noite estava cerrada quando decidimos intervir. Transportámos os bancos da cozinha para o galinheiro, um violino e o meu mais recente livro de metáforas. 

Patos de um lado, galinhas do outro. Nem um piu, um pestanejar de olhos. Só um ressoar de penas para aconchego das asas. 

À porta do galinheiro, o Dique, imponente, observava sem dizer uma palavra. 

-Começas tu com as metáforas? 
-Prefiro o violino

Comecei a soletrar um poema, e outro e outro. ao som do violino, até os animais adormecerem. 

O Dique levantou a cabeça e fez-se luz. Começou a lamber a lua cheia e o galo despertou para cantar. 

Retirámo-nos pé ante pé para não perturbar o concerto.

No dia seguinte a pata tinha sido galada pelo tenor. A s crias visivelmente reconhecidas afagavam as penas das galinhas, que punham ovos nos sítios mais incríveis. 

-Acorda - acabei de sonhar 
-Outra vez o Ricardo Reis? 

-Já ouvi essa historia e continuo a não entender como é possível um cão numa noite cerrada
lamber a lua cheia.
Onde está a verdade dos sonhos?


Eufrázio Filipe


quinta-feira, 28 de junho de 2018

COMO TE VEJO





Ainda não aprenderam
os meus olhos

a verem-te como és

mas apenas como te vejo

Eufrázio Filipe

segunda-feira, 18 de junho de 2018

GUIADA PELO MEU CÃO






Quando o vento em torvelinho
se escancarou nas águas
abriram-se janelas de luz
neste chão de marés
para tu passares

pelos sinais
desobrigada sereníssima sem quebrantos

despertaste os barcos
numa carícia de tremulinas

Eras tu senhora
guiada pelo meu cão


Eufrázio Filipe
(reeditado)

sábado, 9 de junho de 2018

À LUZ DE UM FÓSFORO


                                               



Nesta noite de alaúdes e jacarandás
a contar pelos dedos
os sons da vida
colhemos a vasta sede
caminhámos por sobre as águas

cúmplices nos olhares 
e nas partituras
plantámos uma árvore
na velha escarpa
festejámos o barco
das nossas raízes

Nesta noite de mares silvestres
regressámos
à síntese da nudez
fizémos um gesto 
e tudo ficou mais claro
à luz de um fósforo


Eufrázio Filipe

segunda-feira, 4 de junho de 2018

CHOREI COM OS CÃES






Conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada,estreita,iluminada pela lua cheia.
De repente um vulto na minha rota. Não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor. 
Ao contrário do que se diz, as fotografias não substituem as palavras, mas esta sangrou-me.
Saí do carro e ajoelhei-me junto do animal- um rafeiro alentejano, lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho 
- É pá - mataste um cão livre.  
A lua cheia derramava-se, inundava o silêncio de cores pálidas e eu levei-o ao colo. 
Quando chegámos a casa só pude fazer o que fiz.
Chamei o Dique e pedi-lhe para convocar todos os cães da aldeia. O funeral foi marcado para a meia noite.
Todos compareceram.
Solidários quatro amigos mais corajosos ofereceram-se para escavar a terra, num canto da horta, onde espontâneas medram as hortelãs.
Todos reunidos no mais profundo silêncio, quando um uivo comovido despoletou um choro colectivo.
Só o Dique não chorou. Trazia na boca uma papoila que largou na sepultura. 


Eufrázio Filipe
"Caçador de relâmpagos"

sábado, 26 de maio de 2018

GESTOS VERTIGINOSOS






Esculpidas numa campânula de sons
as palavras tilintavam
eternas por um instante

interrogavam-se ao espelho
na memória das pedras

Neste jardim emergente
nem todos os jacarandás
rebentaram em Maio
mas as estátuas e os melros
no seu refúgio preferido

como se fossemos nós

entoaram a preto e branco
sinais de ternura
gestos vertiginosos


Eufrázio Filipe

quarta-feira, 23 de maio de 2018

JÚLIO POMAR




Júlio Pomar iniciado no neo-realismo é referência maior da cultura e da inovação das artes plásticas cultivou o desenho e a poesia desde a resistência à ditadura. 
Não deixemos morrer os nossos mortos. 



segunda-feira, 21 de maio de 2018

SALVEM O LEÃO




Com o devido respeito por alguns sportinguistas amigos
resolvida a bagunça do Bruno
salvem o leão


quinta-feira, 10 de maio de 2018

À FLOR DAS ÁGUAS


                                                             Foto de EDUARDO GAGEIRO
                                           

Virtuosa " a vida determina a consciência" 

luta ama despe-se
testemunho de flores
pintadas com os lábios 

em digressão

premonitora de outras paragens
escrita por dentro das palavras
desbrava caminhos transgride
alimenta barcos e gestos
planta árvores no cais
explode à flor das águas

os pássaros (e)ternos 
regressam ao que sempre foram


Eufrázio Filipe

quarta-feira, 2 de maio de 2018

INOCÊNCIAS





Quando os muros são de vidro
parecem transparentes
cresce a fala no teu corpo
são grandes os teus olhos
finíssimas as águas
de todas as fontes

vivem encarnados os peixes
na tua boca
e correm por ti  gestos simples

cresce a fala
sabe a terra húmida
o corpo arado
e sussurram  papoilas
mais leves que o vento

assim se viaja
em pleno voo
bebem orgasmos
para espanto
de todas as inocências



Eufrázio Filipe


sexta-feira, 20 de abril de 2018

NA TUA VOZ






Cantavas
cantavas
cantavas

e eu não sabia
se eras tu

ou um pássaro
do alto

a prender-me o olhar
na tua voz


Eufrázio Filipe

domingo, 15 de abril de 2018

A DUNA SOU EU






Enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.
- O cão ou o velho? 

Lentos, trôpegos, com os pés a tracejarem os caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias. 
O cão, mais velho que o dono, era o guia, a sua bengala de cego. 
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna abrupta sobre as águas. As aves marinhas mergulhavam a pique, esbracejavam só para os salpicar. Lá iam  serenos livres sem palavras - imensos.
No ar o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de marés. 
Chegados ao topo da montanha era sempre assim - o velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos. 
Sentados respiravam infinitos - o perfume das algas. Adormeciam de olhos abertos. 

Um dia, ao longe, alguém de um barco bramou 

- Fuja a duna vai desmoronar-se. A duna vai cair. 

Imperturbável, com as areias por entre os dedos, respondeu baixinho para não acordar o cão 

- A duna sou eu. 


Eufrázio Filipe
"Caçador de relâmpagos"

domingo, 8 de abril de 2018

NO PRINCIPIO DOS PÁSSAROS






Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras ininteligíveis

saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação

importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos

e dulcíssima te desfolhas

Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores nos jardins
quando passas

não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros



"CHÃO DE MARÉS"
Eufrázio Filipe

terça-feira, 3 de abril de 2018

NAVEGO À FLOR DA PELE






Nem sempre é claro
o fio que une as margens
muito menos de passagem
num abraço de limos

declino o arco
das frágeis pontes
navego à flor da pele
para não ferir as águas

onde passo


Eufrázio Filipe

terça-feira, 27 de março de 2018

ILHAS ADJACENTES




Na alquimia do tempo que faz, há sempre um albatroz que atravessa as arcadas da memória, desfaz-se em gestos de ternura, dissolve-se no pôr-do -sol, invade-nos o sonho, passo a passo. 
- Desejo que germines em vagas nas arribas, que rebentes a marulhar no labirinto das areias. 
- Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas. Desejo ficar aqui no perfume dos limos, mesmo que as vagas só despertem por sobre os restos do último naufrágio. 
- Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos. 
- As melhores viagens acontecem sempre antes da partida e no regresso. No ciclo das marés. Só assim consigo partilhar o ardor das velas do nosso mar. 
- Pareces a ministra que conheci no dia da remodelação do governo.
- Meu amor rema.
- Não consigo dormir. 
- Vamos fazer amor? 
- Só nos espelhos. 
- Hoje não estou a gostar do modo como os espelhos nos olham. Este rio está uma sopa. Ressoa brando nas fissuras das pedras. Repara como a praia deserta se amontoa de areias sem abrigo. 

Inesperadamente um albatroz poisou majestoso aos nossos pés. Fixou-nos com olhos vivos e perguntou-nos baixinho num afago de asas - de que cor são os meus olhos - e tu não soubeste responder. 

- Apetece-me viajar ainda mais . Porque não vamos ao Bugio? 

Construímos um barquinho de papel e partimos ao sabor da brisa. 
Lá estava sentado nas águas do rio, imponente, coluna na vertical e sereno. Sábia fortaleza, sempre alerta, - hoje um farol a piscar os olhos no estuário do Tejo, como nós, ilhas adjacentes. 

- Vamos fazer amor?
- Ainda não disseste a cor dos meus olhos. 


Eufrázio Filipe

terça-feira, 20 de março de 2018

O APEADEIRO DA BEMPOSTA






Parti em viagem.com todo o tempo,por vales,rios e montes - mapas rasgados a despertar azinhagas e amoras silvestres. 
Tropecei numa aldeia - casas dispersas, outras geminadas, um café, uma taberna,uma mercearia, uma capela, um pelourinho e um apeadeiro de caminho-de-ferro. Uma aldeia linda, afagada por canaviais, chorões e o cantarolar de um riacho onde corriam águas cristalinas. 
O Café Moderno exibia um jogo de matraquilhos, seis mesas, e um rádio antigo em voz alta. 
- Como se chama a vossa aldeia? 
- Bemposta. Diz a lenda que uma senhora real, muito bem vestida e triste, visitava aqui um aldeão. Vinha de charrete e depois partia, nua e sorridente. O Alexandre é que sabe explicar estas coisas. Deve estar no apeadeiro. 
No apeadeiro encontrei o Alexandre - um velho que se recusava a ser velho, sentado num banco em frente à linha dos comboios. 
- Velho não, um jovem com experiência. 
Um dia quis ser músico, precisava de dinheiro e parti. A minha vida foi sempre partir e chegar. 
Emigrei para uma grande quinta, sem contrato, perto de Marselha. Uma vez por ano trabalhei ali na apanha da maçã. 
Três armazéns albergavam o pessoal - portugueses, espanhóis e polacos. 
Os que chegavam primeiro, apanhavam camaratas - os outros dormiam no chão. 
Quase sempre chovia nos armazéns. No primeiro ano rasgou-se o meu impermeável . Não fácil resistir, mas resisti. 
Cada um tinha um "rego" com cinco quilómetros de macieiras.
Colocávamos o cesto de verga, com alças, amarrado à cintura, subíamos e descíamos o escadote, até apanharmos 350 kg por dia. Quem mais apanhava mais ganhava. 
- Mas quem mandava em si? 
- Eram as maçãs. Enquanto houvesse uma maçã na árvore, quem mandava era a maçã. 
Ouvi dizer que a liberdade não cai do céu, conquista-se no chão que pisamos, mas no meu caso só de escadote, em cima das macieiras.
À noite cada um fazia o seu repasto. Estoirados dormíamos à pressa. 
Só tínhamos o domingo para ir aos molhos no atrelado do patrão, abastecer-nos para toda a semana e divertir-nos à chegada no armazém dos polacos. 
Os tipos estacionavam um Volkswagen a cair de podre junto do armazém e ligavam o rádio. Uns dançavam com as mulheres que por ali apareciam, outros embebedavam-se e jogavam às cartas. 
- E no dia seguinte? 
- No dia seguinte, as maçãs geladas entravam-nos pelas mãos até aos ossos. 
Um polaco que se dizia iluminado por Deus gritava todas as manhãs - "Estou no topo do mundo" . Um dia caiu do escadote, partiu os dentes e deixou a religião. 
Nunca consegui dinheiro suficiente para ser músico, mas fiquei para sempre  com uma mulher no coração. 
Uma santa mulher que me ensinou a contar pelos dedos todos os silêncios. E a cantar. Mais linda que a Bemposta. Parecia um pássaro azul. 
Sou caçador de relâmpagos e o amigo que faz na vida? 
- Sou artesão de metáforas. 



Eufrázio Filipe

quarta-feira, 14 de março de 2018

HAJA LUZ





A noite estava tão escura
que nem parecia noite

lambidas as sombras
ficou um rio inteiro
a memória de uma luz
vertebrada

em transito
à flor das águas


Eufrázio Filipe

quinta-feira, 8 de março de 2018

BAILADO DE CORES LÚCIDAS








Libertas-te por gestos
nas margens dos salgueiros
recolhes céus que desabam
no refúgio deste chão

Quando chove 
na folha de papel
e se desmoronam as palavras
és o rio que mata a sede
timbre de outros mares

ergo-te pela cintura

és o meu rio

vicejas
num bailado de cores lúcidas


Eufrázio Filipe

"Chão de marés"

quinta-feira, 1 de março de 2018

NA BOCA DAS SEMENTES






Bátegas de lume branco
na crista das ondas
tilintavam
no bico dos teus seios
lubrificavam a terra
gretada
quase divinas

fui ver

o mar
simplesmente chovia
na boca das sementes

Eufrázio Filipe


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

PÁSSAROS NOS LÁBIOS








Com tantos caminhos
por mares desnavegados
numa ode que teima
regressar ao alpendre
construímos um barco
em pleno voo

é assim

quando as palavras
se deslaçam
acontecem pássaros
nos lábios
mesmo que sejam brancas
as memórias e os cabelos

quando as palavras sobem
aos mastros mais altos
nem barcos nem pássaros
só bandeiras
a falar por gestos
num beijo




Eufrázio Filipe

domingo, 18 de fevereiro de 2018

DESVENDAVA-TE






Sempre que improvisas acordes
gosto de ouvir-te em silêncio

indecifrável
quase inocente
a libertar os mais contidos desejos

eterna por um fio
à luz de um fósforo

se soubesse explicar
o movimento das sombras
a dissonância do relógio de pêndulo
o chão dos barcos a  óleo
nas paredes da casa

pegava-te ao colo poema

desvendava-te

Eufrázio Filipe "Cháo de claridades"