segunda-feira, 26 de julho de 2010

SEARAS

Gogh

É o sol que desponta
quando acendo um fósforo
e vejo como se movem as sombras
quando luz
e desfolha a noite
num sopro de lume

É o sol a raiar
que se deita no chão
despido de pétalas
a ouvir pássaros de ninguém
improvisárem hinos na folhagem

É o sol que se ateia silvestre
muito antes de ser dia

mas nem assim troco as tuas flores
por outras bandeiras
nem os teus lábios
por outros jardins

mesmo que o outro sol
adormeça de cansaço

as searas

domingo, 18 de julho de 2010

A SENHORA DA LIMPEZA



Antes de chegar às galerias identificaram-me com um sorriso.
Subi no magnífico elevador, conduzido por um delicado polícia.
Sentei-me nas galerias e olhei para baixo. Lá estavam os representantes da nação. Os eleitos da república. As palavras cruzadas, as ideias esgrimidas, as bandeiras nas lapelas, os passos perdidos, os aparelhos políticos. Os credos e os farsantes. Desiguais.

Inocente segredei a um jovem cabisbaixo, companheiro de galeria
- Coisa linda esta democracia.

Lá em baixo também estavam os meus, pouco numerosos ainda mas a combater pela maioria que vive nos subúrbios de tudo.
Lá em baixo quase todos esquecidos de subir os olhos para as galerias, tricotavam a verve, gesticulavam poses de verniz.
De quando em vez disparavam blasfémias, partilhavam impropérios para mais tarde se abraçarem à hora do repasto.

Inocente o jovem cabisbaixo, segredou-me
- Comigo um dia isto será diferente.

Terminada a sessão plenária os deputados saíram como estava previsto. O amplo salão ficou vazio, soberbo e solene. De tantas memórias.
O salão ficou vazio mas eu deixei-me ficar até ser convidado a sair pelo mesmo delicado polícia.
Foi um dia que resolvi festejar em silêncio.

Procurei um restaurante no belo bairro de São Bento e sentei-me à mesa.
Serviram-me o intragável discurso do primeiro ministro, em diferido.
Os àcidos bem convergiram, mas não foram eficazes para digerir o falacioso paraíso.
Fechei os olhos, abri os olhos e pedi o livro de reclamações, onde escrevi - " O que me serviram está fora do prazo. Quando chega a nossa vez ? "

Levantei-me da mesa sem pagar. Os empregados ficaram a ler o meu protesto.

Lá fora ouvi alguns aplausos mas fiquei na dúvida quanto ao seu voto.

Dei uma volta ao quarteirão e na passagem ainda olhei para a fachada do restaurante, Larguei um viva à República, à liberdade e ao 25 de Abril.

Para meu espanto a porta rangeu. Começou a abrir-se lentamente.

Era a senhora da limpeza.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

MURAIS



Pobres metáforas
nas mãos dos poetas
que as cinzelam e desconstroem
para tentarem iludir palavras
de carne e osso
condenadas a chamar às coisas
nomes indizíveis
mesmo quando afloram raios de luz
sombras iluminadas
ou vergam o corpo nas searas
à pergunta de infinitos

Pobres de nós
que insistimos viver
para lá da morte
no massacre das metáforas
quando é tão simples e belo
colher o trigo bafejado
no voejo das ancas
que medram gradas
frutos maduros
espigados nas nossas mãos

Pobres metáforas
inevitáveis sem repouso
mesmo quando sangram
felizes deusas inventadas
na minúcia de uma pausa
sílaba pauta traço
inscritas no vento
para alimento mural
de um bando de pardais

quinta-feira, 8 de julho de 2010

DESFOLHADA

Soltei um pássaro
que me pousou no texto
mas não lhe evitei
o menear das pétalas
Só mais tarde
tão tarde
que já adormeciam as palavras
ouvi espargir irrepreensíveis
metáforas
na folha de papel
Soltei uma rosa
que se exala
quando a sopro para voar
mas sempre regressa
desfolhada
como um pássaro