quarta-feira, 29 de outubro de 2008

NO TOMBO DOS DIAS


Nos interstícios de cada maré
os violinos têm por hábito
adormecer
só para respirarem
os frutos primitivos do silêncio
nos teus braços
Definitivamente descalça
tão linda e tão triste
nesta manhã que se arredonda
fluis como um rio
de costas para a cidade
no tombo dos dias
Assim colho os perfumes dissonantes
solto os cabelos
para me enlaçar
no teu canto
e talvez inutilmente
sacudir-te de sombras

domingo, 26 de outubro de 2008

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A PÉROLA


Na plateia - adversários e inimigos de ocasião, cumprimentavam-se alegremente. As senhoras - umas finas, outras anafadas, outras simplesmente - exalavam uma complexidade de perfumes e tiques, ao lado dos seus amantes. Ali estava em síntese, a chamada nata da nação.
No palco - antes de tomar a palavra, o dr. O.K. lançou os dedos ao nó da gravata. Não o apertou. Guinou-o com elegância para o lado direito.
De um dos punhos da camisa um botãozinho de pérola certificada, precipitou-se do palco e rolou - rebolou-se pela carpete parda que dividia a plateia.
Um senhor bem posto,sentiu a coisa linda mesmo junto de si. Esticou a perna e assentou-lhe a sola do sapato.
As luzes do auditório apagaram-se para que todos se concentrassem no palco onde alguem anunciou
- Está aberta a sessão. O dr. O.K. vai esclarecer o país.
Na sala - pejada de gente lustre, ouviu-se estridente uma saraivada de palmas, que o dr. O.K. agradeceu.
- Não bateu palmas?
- Como sabe, hoje aceitei ser apenas a sua bengala de cego.
No palco - com um plasma gigante, o orador iniciou o discurso. O país estava em directo. Suspenso. A plateia paspalha arfava como o ar que se respira a si mesmo.
- Senhoras e senhores, meus amigos - dirijo-me ao país num momento difícil para a civilização ocidental. A vida tem ciclos, blá, blá, blá, mas o nosso país blá, blá.
O sistema liberal excedeu-se, a crise instalou-se, mas não abandonaremos as dinâmicas do mercado, porque o Estado não faliu.
Senhoras e senhores, compatriotas - por cá estamos reunidos, em família, blá, blá.
Como sabeis a nossa economia está em baixa, as nossas finanças dependentes do exterior. O país terá de apertar o cinto. Lamento ser tão agreste mas de mim só podeis contar com a verdade.
O desemprego vai crescer, mais ainda os que vivem abaixo do limiar da pobreza.
Meus amigos, se não tiverdes confiança no esforço blá, blá, não será possível repensar o sistema e garantir a liberdade. Hoje mais que nunca quero pedir-vos confiança.
A assistencia aplaudiu e lançou blá, blás tímidos para o ar.
- Não aplaudiu?
- Que horas são?
Alguem na plateia que não se conteve, levantou-se e perguntou em voz alta
- Dr. - teremos de apertar ainda mais o cinto?
- Meu amigo, o senhor é meu convidado nesta sala. Sugiro que se retire.
Gerou-se alguma confusão, mas um estafeta de serviço subiu ao palco e segredou ao dr. O.K. - blá, blá, blá.
- Meus amigos, país - a vida tem destas coisas - chegou-me uma bela notícia. Já há dinheiro nos bancos, muitos dólares. Já não é preciso apertarmos o cinto - a não ser aqui ou ali.
A assistencia, eufórica, aplaudiu de pé - gritou blá, blás.
Vizivelmente risonho, o orador continuou
- Antes de terminar, aproveito para recomendar àquele amigo, que me devolva o botão de punho.
O auditório esvaiu-se alegremente.
- Então não diz nada?
- Isto está mesmo a pedir chuva.
Na rua chovia.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

COM A SERRA ÀS COSTAS

COVÃO D'AMETADE

Agapito - aldeia lendária,nos castros dos Montes Hermínios, nas fraldas do Covão d'Ametade, não era mais que um ponto minúsculo no mapa do reino. Um vale quase glaciar enclavinhado na serrania interior onde nunca foi fácil respirar.

Em Agapito ousavam viver cinquenta e tal pessoas, trezentas cabras, mais os lobos e os cães da serra.

Viviam do amanho das pobres terras, da pastorícia e do temor a deus.

Os homens apascentavam cabras e as mulheres faziam de tudo.

Desapercebidos viviam felizes e analfabetos.

O poder do reino ignorava completamente a existência de Agapito, mas um chefe dominava a aldeia - o abade Fiuza, que ali tropeçou por acaso, quando um dia após longa cavalgada, perseguia uma cabra branca. Perdido por ali ficou.

Os agapitenses - construiram-lhe um abrigo para habitar e pregar.

Volvidos os anos a aldeia continuou ignorada, perdeu habitantes e os rebanhos emagreceram.

O abade Fiuza permanecia alegremente no poder.

Neste período de declínio da civilização agapitense, um pombo correio, pousou exausto no ombro do chefe que em silêncio leu a mensagem.

"O reino vais ser percorrido por voluntários, com o propósito de alfabetizar o povo".

- Não pode ser. Não consinto que devassem esta terra.Aqui nem uma letra. A minha gente está feliz.

Reunida a aldeia de emergência, Fiuza declarou o recolher obrigatório. O povo aplaudiu comovido.

- Ficarei de vigía.

Fiuza - fardado a rigor, ungido com óleo de cabra, colocou-se no centro do carreiro principal da aldeia, disfarçado de anjo.Ali ficou dias e noites a fio, pernas abertas, mãos apoiadas na cruz, dentes a postos e um sorriso cordeiro na armadura.

Na rectaguarda os fieis - de joelhos, recolhidos - respiração suspensa. Nos estábulos o gado balia, ordenhava-se a si mesmo.

Agapito - uma aldeia ignorada, no interior do reino, não foi bafejada pela campanha de alfabetização.

O abade Fiuza - firme, sorridente e arrogante, morreu como mártir no seu posto.

O povo - com a serra às costas, vai aprender mais tarde.

domingo, 12 de outubro de 2008

OS CÃES NÃO DORMEM


- Sempre que há lua cheia algo acontece de inesperado.
- Não esqueça a influência das marés.
Na sala os cães dormiam ou fingiam dormir, mesmo em frente à generosa lareira.
Sentados no sofá respirávamos os sons de "Alexander Soundtrack" por "Vangelis" nas oito colunas, e afagávamos os cabelos um do outro.
- Hoje vou contar-lhe uma história que ouvi no intervalo de um conselho de ministros.
- Só um momento.
Levantei-me. Coloquei mais uma acha na lareira, passei as mãos no pêlo dos cães, desliguei a aparelhagem, regressei ao sofá. Aconchegámo-nos.
- Estou pronto. Avance.
- Era uma vez um Don Godofredo, ilustre senhor de pendão e caldeira, fidalgo de puro sangue, grandessíssimo cavaleiro que se iniciou na arte de bem cavalgar, mal deu os primeiros passos.
Tinha cinco aninhos piratas e já treinava em cavalos de papelão.
Quando ia ao sr. Hipólito tirar o retrato de família, assentava as patinhas com esporas agrestes, nas ancas do brinquedo e lesto num pulinho gracioso e valente - montava o animal, sem lhe tocar com os cascos. Um artista.
- Não está a ser severa com a criança?
- Só que a criança cresceu. Posso continuar?
- Avance.
- Num certo dia de cavalhadas no castelo, o papá banqueiro que negociava com os índios, quiz fazer uma experiência com o puto.
- Índios?
- Não interessa. Posso continuar?
- Avance.
- Meu filho - quero fazer de ti um homem à altura dos nossos pergaminhos. O papá investe e tu toureias. Teremos o país nas mãos.
Volvidos tempos, o banqueiro - após tantas touradas, comprou um cavalo e um toiro a sério, investiu com gana e fez do filho um homem.
Don Godofredo, menino prodígio, tornou-se profissional e nunca mais quiz outra vida - tão bem se sentia na grande farra. Tinha dinheiro, vinho verde e mulheres de raça. Passou a frequentar com assiduidade as ganadarias, as adegas, o meio social. Visitou amigos e os cavalos dos amigos.De quando em vez dava espectáculo na assembleia popular do Campo Pequeno, já muito acanhado para a sua estatura.
O banqueiro começou a sentir-se ameaçado no seu orgulho de fidalgo e comendador. Decidiu meter-se uma vez mais, em altas cavalarias, com toda a raça. Deu um coice e disse.
- Isto não pode continuar assim. O Godofredo está a ir longe demais. Estou farto. Antes a palha ao pequeno almoço.
Entretanto Godofredo que já não habitava o castelo, apercebendo-se das intenções do progenitor, convidou-o para jantar no Jardim Zoológico.
- Foi então que interromperam a história para regressarmos ao conselho de ministros.
Na sala a generosa lareira reacendeu-se com o ladrar dos cães - que fingiam dormir.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O VINHO DOS NOSSOS PÉS

Malhoa- Praia das Maçãs
Irrompem fios de música
rio abaixo
folhas secas que rugem
inclinadas nos teus olhos

As palavras colidem

quando circulam mansas

no espanto da paisagem

mas os pássaros permanecem soltos

na nossa ilha

Frente a frente

aqui nos sentámos ao avesso

como estátuas longínquas

só para inalar as pautas do silêncio

Aqui nos sentámos

para que tudo aconteça

mesmo de tão pouco

se rasgue em claridades

este tempo inabitável

Aqui nos sentámos

só para respirar

sabendo que os apeadeiros

não se repetem

mesmo quando em Janeiro

provarmos de novo

o vinho dos nossos pés


quinta-feira, 2 de outubro de 2008

QUE A SOMBRA SE REBENTE

Afrodite
Neste tempo sussurrado
nem todas as folhas
caem no chão

algumas fremem hasteadas

em tranças

de belas cabeleiras

outras existem

que de tão pálidas

se levantam

movidas por um sopro

Neste tempo sussurrado

ergo-te à luz e ao vento

e deixo que a sombra

se rebente