domingo, 31 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (3)


                                                     reconstruído do meu CAÇADOR DE RELÂMPAGOS"

... enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.

- O cão ou o velho?

Lentos, trôpegos, com os pés a tracejarem  caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias.
O cão mais velho que o dono  - era o guia, a sua bengala de cego. 
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna, abrupta sobre as águas, as aves marinhas mergulhavam a pique - esbracejavam asas só para os salpicar - e eles lá iam , serenos, livres, sem palavras - imensos.
No ar cálido, o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de maresias.

Chegados ao topo da montanha, era sempre assim. O velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos.

Sentados nas areias respiravam infinitos - o perfume das algas. Adormeciam por instantes para logo despertarem o voo das aves. 

Ao longe, muito ao longe, inesperadamente, alguém de um barco bramou 

- Fuja - a duna vai desmoronar-se

Impertubável respondeu baixinho - para não acordar o cão

- A duna sou eu?



terça-feira, 26 de julho de 2011

ATÉ AO INICIO DAS MÃOS




Já tinham colhido as flores do jardim
mas tu cumprias um caminho
desaguavas como um rio
e eu não sabia que respiravas
à flor da pele
por todos os póros

Muito antes de me ajudares
a plantar uma árvore
procuráste a margem

tão líquida por entre os dedos
construiste um corpo uníssono
contra todos os destinos

Encontrei-te com um simples toque
numa folha de papel
a vaguear no espelho das águas

dedos nos dedos
até ao início das mãos



terça-feira, 19 de julho de 2011

NO OUTRO LADO DO CAIS



Sem repouso nem ameias
contra o vento que faz
um barco luz
na sede das águas

acorda madrugadas
ao romper dos pássaros

Ao longe
numa rota apócrifa
tilintam trinados que trinam
consistentes nos teus dedos
em acordes de alaúde

Ao longe
onde me ergo
rumo remo voo
numa paleta de sons

vejo-te acenar
a este barco
carregado de velas
á janela

tão livre
no outro lado do cais





quarta-feira, 13 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (2)

                                        publicado no meu "Caçador de Relâmpagos"  (reconstruído)

                      

... conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua cheia.
De repente, um vulto na minha rota que não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor.

Ao contrário do que se diz, as fotografias não substituem as palavras mas esta sangrou-me.

Sai do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho

- Camarada mataste um cão sem dono.

A lua cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para o interior do carro.

Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz. 
Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. 
O funeral foi marcado para a meia-noite. 

Todos compareceram 

Solidários,  amigos mais corajosos ofereceram-se para escavar a sepultura num canto da horta, onde espontânea medra a hortelâ.

Todos reunidos no silêncio quando um uivo comovido despoletou em choro.

Só o Dique não chorou.
Trazia na boca uma flor vermelha que largou na sepultura.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (1)



Após longos tempos na cidade a ver o mar pela trapeira decidiu arrumar os tarecos e partir.Comprou um cão mais um punhado de terra.Construiu um casebre um canil um galinheiro e uma horta.
Começou a apreciar as estrelas o cantar dos pássaros silvestres o rumor das árvores.Aprendeu a assobiar com o vento.
Levantava-se cedo só para ver o nascer do sol dormia de tarde e levantava-se só para ver o pôr do sol.Trabalhava à noite a ouvir jaze.Tinha finalmente o horário dos padeiros.
De quando em vez visitava o café do senhor Abílio para saber como plantar uma couve se o cão podia comer entrecosto que bolbos floriam em cada estação e àcerca do míldio a propósito de umas parreiras que medravam dispersas no terreno.
Nunca mais quiz saber da cidade.Chegou mesmo a conhecer o nome dos pássaros pelo seu canto.Não amava mas estava apaixonado.
Um dia o cão que era de barro disse-lhe
- Vê lá se me pintas de azul estou com saudades do alto mar.
- Também tu cão?




sábado, 2 de julho de 2011

A ROTA DAS AVES



Nos sapais onde nidificam
as garças
eram simples de explicar
as nossas pátrias

Ali nos despíamos
e habitávamos
horas longas

até a noite nos transportar
para outras cores
num passo de dança
por sobre as águas

Nos sapais
ao ritmo das marés
(e)ternos
até os cães uivarem nas margens

Corría-nos a maresia nas veias
cumpriamos a rota das aves