sexta-feira, 27 de maio de 2016

A MEMÓRIA DAS PEDRAS






É preciso ouvir as pedras
o corpo inteiro
das escarpas
beijar o chão das palavras
que falam por gestos

é preciso ouvir as pedras

grãos de areia 
moventes
por entre os dedos
que se riscam
e alumiam noites

dão sentido à luz
breve
quase perfeita
de um fósforo

é preciso ouvir
a memória das pedras


Eufrázio Filipe

segunda-feira, 23 de maio de 2016

LUZ VERTEBRADA





Nada é absoluto

nem este sítio
onde dulcíssimos cães
lambem os céus
sonâmbulos pássaros
mentem na desmemória
das árvores

nem os gestos
aparentemente inúteis
a viverem de olhos fixos
em bando
acordados à sombra dos relâmpagos

nada é exacto

a não ser uma certa luz
vertebrada
que se consome
ao entrar pelas frinchas
da escarpa


Eufrázio Filipe
"Presos a um sopro de vento"

segunda-feira, 16 de maio de 2016

POR SOBRE AS ÁGUAS





No chão que pisamos
passava um rio

plasmado nos espelhos
em desalinho
exorcizando as margens

Aqui deixámos sinais
traços de luz
a morfologia do movimento

Hoje escrevo a preto e branco
à pergunta do rio azul
caminho por sobre as águas
ocupo-me do porvir


Eufrázio Filipe

terça-feira, 10 de maio de 2016

MAR





Respiramos fundo
pelas narinas do vento
em todos os póros das palavras

esculpimos garatujas
num grão de areia
vestígios submersos
no movimento do rio

pequenos nadas
afagados pelas águas que passam

Resgatamos a pulso
por muito que doa às pedras
uma janela aberta

a síntese exposta
da nudez


Eufrázio Filipe
 

sexta-feira, 6 de maio de 2016

INTEMPORAL






Intemporal luz efémero
no espelho das águas

desafia a eternidade
exilado num concerto
de pássaros

Intemporal
a cerzir palavras
tenta libertar o vento
de sombras

Um dia vai despir-se de tudo

provavelmente morrerá
alado

mais livre que os pássaros
a cantar

Eufrázio Filipe
 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

FLORES DE ESPUMA





Um círculo de garças
nem brancas nem esguias
adormecem nos barcos ancorados
com olhos excessivos

Nesta ilha sem vista para o mar
navegam águas improváveis
faúlhas num incêndio
de partículas sitiadas

Aqui paira o aroma da cânfora
em ressonâncias quase divinas
poisam lábios em cálices de cicuta

O mar não é sempre azul
e talvez por isso se agite
nos mapas imaginários
rasgue caminhos
para não se perderem os náufragos

Nesta ilha de bálsamos
onde os destinos se desmentem
afagamos ruínas soltamos hinos
por sobre a memória das pedras

damos voz aos silêncios

até que as garças
se tornem brancas e esguias
como flores de espuma

Eufrázio Filipe
( 2008 )