sábado, 30 de outubro de 2010

A SEREIA



Já a idade das sombras era massacre quando o arquipélago se precipitou nas águas. Só os cavalos salgados de ventos e marés percorriam caminhos alados. Palavras infinitas na boca dos naufragos.
As ilhas já quase não se falavam. O país estava sequestrado nas mãos de um punhado de abutres que entenderam convocar uma assembleia para decidir a vida ou a morte do arquipélago.
Estávamos no Outono. Só as folhas caíam mas estupidamente fazia sol no chão das romãzeiras.
Nas águas uma frota de barcos brunidos desembarcava a nata da nação na ilha mais inacessível aos naufragos.
No mais profundo silêncio fardadas diligentes meninas esculturais gingavam-se de avental com rosas embutidas - ofereciam-se em bandejas de frutas tropicais e cálices de vinhos generosos - à canalha.
De quando em vez em parelhas sorriam venenos para um fotógrafo de família e por ali ficaram pela vida fora em conversas de palha até ao pôr-do-sol.
Ao tocar a campaínha todas as sombras entraram no auditório. Uma generosa sala de lustres com palco ajardinado ao fundo onde magestoso o chefe com os seus sub-chefes aguardavam o momento solene. Nas suas costas pendiam sonâmbulas e sofridas as bandeiras de cada ilha.
Com uma hora de atraso a magna reunião dos donos do arquipélago estava para se iniciar à porta fechada quando um cretino solicitou à mesa para se ausentar por cinco minutos.
Tolerante o chefe máximo do pessoal menor concedeu os cinco minutos.
O cretino levantou-se. Tentou acender a luz da casa de banho. Nada. Acendeu o isqueiro para localizar o urinol. Nada. Aflito urinou no lavatório mas antes já tinha mijado nas calças e foi assim que cumpriu os cinco minutos.
A reunião nacional começou com a solicitação de intervenções curtas para recuperar o tempo perdido uma vez que a ordem de trabalho tinha sido préviamente distribuída.

- Há inscrições?

De novo o cretino se levantou ergueu o braço direito para exalar o perfume preferido no seu sovaco. A esmeralda do seu botão de punho - e foi assim tartufo que solicitou à mesa ;

- Proponho que tudo seja aprovado por aclamação.

Após a anuência do chefe a evolução na continuídade estava aprovada com uma saraivada de palmas que só foi interrompida pela doce e profunda voz de uma sereia autêntica - que trespassando as paredes do auditório - proclamou:

- Estais condenados. Estas ilhas estão rodeadas de sonhos.


sábado, 23 de outubro de 2010

O PÃO CRESCEU NAS NOSSAS BOCAS

publicado no "Para lá do azul"

Ver-te assim tão indecifrável
nos contornos e nas arestas
ancorada nas marés
em chama viva
a entrar pela casa vazia
sem desistir dos silêncios
a resistir mesmo quando doem
os passos e as pontes
fez-me pedir ajuda
a um cântaro de água fresca
às pedras que cantam e tropeçam
nos pés das videiras
Foi assim que nos despimos
e vindimámos
para os barcos cumprirem
o seu efémero destino
As uvas morreram nas tuas mãos
mas o pão cresceu nas nossas bocas


domingo, 17 de outubro de 2010

FLORES DE ESPUMA

publicado no "Que fizeste das nossas flores"

Um círculo de garças
nem brancas nem esguias
adormecem nos barcos ancorados
com olhos excessivos

Nesta ilha sem vista para o mar

navegam águas improváveis

faúlhas num incêndio

de partículas sitiadas

Aqui paira o aroma da cânfora

em ressonâncias quase divinas

pousam lábios em cálices de cicuta

O mar não é sempre azul

e talvez por isso se agite

nos mapas imaginários

rasgue caminhos

para não se perderem os náufragos

Nesta ilha de bálsamos

onde os destinos se desmentem

afagamos ruínas soltamos hinos

por sobre a memória das pedras

damos voz aos silêncios

até que as garças

se tornem brancas e esguias

como flores de espuma


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NA PASSAGEM

publicado no "Para lá do Azul"


Abro o pano
cai o pano
não existe pano
o tempo passa
trespassa
a passo
voa

para lá do azul
nem uma pedra
na passagem


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

OUTONO

publicado no "Para Lá do Azul"

Uma folha
caíu
simplesmente
aos teus pés


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

100 ANOS DE REPÚBLICAS



No seu "reinado" o ditador Salazar chegou a tentar o regresso à monarquia, pelo que os festejos dos 100 anos de repúblicas acontecem no país de modos distintos - conforme o povo e os "barões assinalados".
Do grandioso baile da república na Fonte Luminosa a uma tourada não sei onde, tudo é possível nesta terra dos Lusíadas - até cerimónias e eventos dignos do 5 de outubro.
Por mim me confesso - alérgico a santos, reis, heróis, chefes e patrões.
Como não podemos mudar de povo - continuo a sonhar no dia em que se " levante do chão" .