quarta-feira, 30 de junho de 2010

NO OUTRO LADO DO SILÊNCIO



Se o Verão fosse um rasto de luz
com vida por dentro
um livro aberto sem repouso
alguém teria de lhe rasgar o ventre

mas o Verão é apenas sol

a queimar o que resta do pasto

tresmalhado pastor

rebanho sem memórias

um cão que dorme

à sombra do cajado


Que importa o Verão

se o teu corpo é de tempestades

e até parece que há sempre algo

que me pertence em ti

só de pensar

a pedra sobre a pedra

o verso e o anverso


Que importa o Verão

se o sol queima

e os cães ainda não acordaram

as sombras que ladram

estateladas

no outro lado do silêncio


quarta-feira, 23 de junho de 2010

PÁTRIAS REPARTIDAS



Andamos há tanto tempo
de um lado para o outro
na remoção do pó
no compasso dos relógios

a construir barcos vertebrados
traços de luz
para os peixes não se afogarem
em lágrimas

Projectados nas paredes da casa
dentro e fora do corpo
peregrinos em espaços rasgados
por sobre as águas
afundámos uma ilha
mas ainda não renascemos
a pintar com a boca na boca
uma maré cheia de salivas
e novas tempestades

Andamos há tanto tempo
nas vagas
que não sabemos se é pó
o desacerto dos relógios

lágrimas nos olhos dos peixes
barcos pintados
ou pássaros livres quase perfeitos
neste mar de pátrias repartidas

sexta-feira, 18 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO

1922-2010
Até sempre camarada

quarta-feira, 16 de junho de 2010

NO COAXAR DAS MARGENS



Acordei a pintar o voo
de um pássaro nos teus olhos
a incitar os cães a lamberem água
na concha das nossas mãos


como se toda a água
fosse de beber às mãos cheias
e os cães
um bando de pássaros
nos teus olhos

De tão breves
acrescentámos à nudez do rio
a sombra de uma ponte
um pedaço de espelho que se olha
nesta desordem de cores

até o pão crescer nas nossas bocas
os silêncios se alimentarem de faúlhas
e nós de outras claridades

Foi quando acordámos completa mente
no coaxar das margens
sem cães nem pássaros

só com os teus olhos

domingo, 13 de junho de 2010

ÁLVARO CUNHAL


... ..." solicito a v.excia que me seja autorizada a entrada de papel de desenho, lápis e borracha apropriados, 2 folhas de cartão que sirvam de pasta-prancheta e uma lâmina ou apara-lápis "... ...

Passagem de uma carta na prisão política (1950)

Álvaro Cunhal

Não deixemos morrer os nossos mortos



sábado, 5 de junho de 2010

NO TEU CORPO



Na esquina de um verso
que se alumia
solto as palavras
para me prender a um risco
e tu entras inominável
texto adentro
e eu passo as mãos
pela tua cintura
lambo-te as mágoas
arredondo-te as arestas
até despertarmos no chão
de uma folha de papel
Tudo se move
até a sombra
quando se ateia
no teu corpo