quarta-feira, 31 de julho de 2013

NO CHÃO DAS ÁGUAS





Nos apeadeiros do rio inteiro
exuberantes olhos
pestanejam vírgulas
na folhagem
inventam histórias
verdadeiras
onde a luz se alevanta
na sombra
branca
dos aloendros

Por uma côdea de sonho
remam memórias
folha ante-folha
amplas claridades
no chão das águas


 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

ÁGUAS DOCES



                                Foto de AUGUSTO CABRITA - Seixal



Entram devagar na Ponta dos Corvos
por janelas escancaradas
respiram fundo nos mouchões
nidificam com as aves

por instantes quedam-se
para os barcos escutarem timbres
no brilho florido das varandas
com sardinheiras
que se despem ao espelho

no remanso
quando a gaivota mais antiga
expressa sinais silvestres
respiram lentas
afagam margens
mostram o chão
que já foi de areias
e apanhadores de seixos

na bruma das pedras
plangentes moinhos de maré
registam os ciclos vertebrados
das águas doces


 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

QUANDO TE ACHEGAS





Na minha aldeia
os pássaros não poisam
porque não há sombras
nem migalhas

tudo se decide
a céu aberto

matamos a sede
a beber água do rio
às mãos cheias
desaguamos entre pedras
infinitos
no mar
que trago nos olhos

Na minha aldeia
não há sombras
quando te achegas

 

domingo, 14 de julho de 2013

CANSADA DE SER PONTE




 
Por sobre um rio
muito aquém dos mares
cansada de pátrias amovíveis
projectas sombras
de todas as cores
 
no chão corrente das águas
despertas o voo mínimo
dos pássaros
e à vista das margens
adormeces em arco
 
cansada de ser ponte
 
 


segunda-feira, 8 de julho de 2013

DONA ARLETE







Cantadeira de histórias verdadeiras decidiu fazer uma viagem de sonho.
Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "Hotel das Dunas" .
Viajou numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho criativo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do aeroporto.
A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas  em parceria cúmplice com pescadores de lagostas, que só abriam os olhos debaixo de água.
Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna  lhes aflorava o corpo.
Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" espontâneo medrava na paisagem deserta - mas por fim choveu com abundância e o povo sereno saíu à rua hilariante. Houve quem tomasse  banho nu em cima dos telhados, a proclamar a independência.
Quando viram a senhora chegar, entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos e louvores. Nada de preces.
Anos volvidos, nunca mais choveu, mas a senhora ali ficou encantada, a despertar silêncios, a hastear memórias da chuva.
Em noites de lua cheia, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende, mas todos aplaudem.
Chamam dona Arlete, à senhora das meias pretas.
Acreditam que um dia vai de novo chover, na boca das sementes.