domingo, 15 de abril de 2018

A DUNA SOU EU






Enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.
- O cão ou o velho? 

Lentos, trôpegos, com os pés a tracejarem os caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias. 
O cão, mais velho que o dono, era o guia, a sua bengala de cego. 
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna abrupta sobre as águas. As aves marinhas mergulhavam a pique, esbracejavam só para os salpicar. Lá iam  serenos livres sem palavras - imensos.
No ar o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de marés. 
Chegados ao topo da montanha era sempre assim - o velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos. 
Sentados respiravam infinitos - o perfume das algas. Adormeciam de olhos abertos. 

Um dia, ao longe, alguém de um barco bramou 

- Fuja a duna vai desmoronar-se. A duna vai cair. 

Imperturbável, com as areias por entre os dedos, respondeu baixinho para não acordar o cão 

- A duna sou eu. 


Eufrázio Filipe
"Caçador de relâmpagos"

12 comentários:

teresa dias disse...

BRILHANTE!!!
Fiquei sem palavras, amigo.
Abraço.

Cidália Ferreira disse...

Muito bom!!

Beijo-Boa noite.

Graça Pires disse...

Neste "concerto de marés" consigo vislumbrar a duna que os ventos ou a brisa vão fazendo e refazendo... Magnífico texto!
Uma boa semana, meu Amigo.
Um beijo.

Boop disse...

Acompanhamos os dois, cão e homem, homem e cão, na lenta caminhada.
As imagens são fortes.
Nesse adormecimento de olhos abertos, nessa imensidão sem palavras, no que me parece uma fusão intrínseca. Tão livres e tão pertença.

Ailime disse...

Um texto muito belo que me comoveu.
Um beijinho.
Ailime

Agostinho disse...

O Poeta imprime na praia as marcas da existência, com a habitual linha de elegância:

A duna fez-se
A duna desfez-se
No ciclo eterno
De ventos e marés

O cão e o velho
Perante a cegueira dos demais

Abraço.

GL disse...

Ele, o velho, é sábio!

Abraço.

jrd disse...

E o velho ficou de pé como quem sabe estar quem é!

Grande abraço

AC disse...

Um saber que se fez vida...
Muito bom, meu caro Eufrázio!

braço :)

© Fanny Costa disse...

Muito bom! Um texto que nos faz refletir. Gosto de ler textos assim e que nos surpreendam.
Beijinhos
Fanny Costa

Julia Tigeleiro disse...

O tempo deixa as sombras de caminhos passados...

Odete Ferreira disse...

Gosto muito de textos a raiar o absurdo...