quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

QUASE (E)TERNOS







A deshoras
vi barcos soltos
perdidos de azuis
e outros mares

colhiam beijos sem mácula
num afago de limos

amarados ao vento
inscritos nas paredes do cais
cumpriam uma rota
contra todos os destinos

quase (e)ternos
a desvendar palavras
em pleno voo

menos livres
que os pássaros


sábado, 24 de janeiro de 2015

PRISIONEIROS DO SONHO






Livres para lá dos limites
num traço esgalhado a pulso

esculpidos no arvoredo
dormem como anjos
a fingir de pássaros

desenham barcos
no pomar das marés
para que tudo aconteça

passo a passo
por sobre as águas
sopram contra o vento

incansáveis
prisioneiros do sonho



domingo, 18 de janeiro de 2015

DESNUDA-SE A ROMÃZEIRA




Neste tempo antiquíssimo
de soluços e mãos dadas
as palavras sem abrigo
com asas enxutas
dedos rendilhados
procuram uma luz sem ameias
alento
para o mar crescer
nos teus olhos

Neste tempo de alaúdes
resiste ao pranto
o relógio de pêndulo
nas paredes da escarpa

desnuda-se a romãzeira


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

POR UM GRÃO DE AREIA





Na safra de outros mares 
anoitecidas as brumas
um pássaro suicidou-se
por um grão de areia

flamejante no lado avesso da vida
nem uma lágrima deixou
no berço
onde medram os aloendros 


sábado, 10 de janeiro de 2015

POSSO PARTIR MAS NÃO ME VERGAM





Respeito os que têm
a necessidade de um deus
desde que não belisquem
a minha liberdade

Posso partir
mas não me vergo

nem perante mim




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

DESPRENDIDA CENTELHA





À flor das mãos
no espelho dos sentidos
quando te despes de tudo
para mover as águas
onde se purificam
os gestos mais íntimos

há um rio
que se transporta

desprendida centelha
que alumia as margens

para te ver passar


sábado, 3 de janeiro de 2015

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO



                                                                                                     (reconstruído)



Após longos tempos na claustrofobia da cidade, por entre arestas, frinchas, esquinas e becos, decidiu arrumar tudo e partir. 
Comprou um cão na berma da estrada e um punhado de terra. Construiu uma casa com vistas largas, um canil e um galinheiro. Desenhou no chão um espaço para a horta e começou a desbravar silêncios no silvestre rumor das árvores. Aprendeu a assobiar com o vento. 
Levantava-se cedo para ver o nascer do sol. Dormia à tarde e levantava-se ao desnascer do dia. Trabalhava à noite ao som do jaze. 
De quando em vez visitava o café do senhor Abílio para saber como plantar uma couve, que bolbos floriam em cada estação e acerca do míldio a propósito de umas videiras que medravam dispersas no terreno. Conhecia o nome dos pássaros pelo seu canto. 

Nunca mais quis saber da cidade. 

Um dia, após longos tempos, inconformado com o sequestro no paraíso, o Dique, que era de barro, disse-lhe: 

- Pinta-me de azul, estou com saudades do mar. 
- Também tu cão?