quinta-feira, 30 de agosto de 2007

NESTE CHÃO

ceifeira/tribosdegaia







Cheias de terra e sol

as tuas mãos

sobre o ventre em festa

de searas

têm o perfume das papoilas



Quando faz vento

um mar de cabelos desgrenhados

voa campo fora

fulvo na transparência dos teus gestos



cresce o pão

nas nossas bocas



e os teus olhos dulcíssimos

mostram

como se move a sombra das azinheiras



todo o corpo

todo o corpo



Cada fruto semeado

pare uma multidão

e nós cantamos

aqui

em todos os póros da palavra



neste chão






segunda-feira, 27 de agosto de 2007

UMA PEDRA NO CHARCO

desenho de Mário Filipe




A Graciosa não era açoreana.Começou por ser um pinto ternamente oferecido por uma amiga.Talvez por isso desde os primeiros pius tivesse

sido criada como família.

Solenemente batizada com um mergulho na água do poço,cresceu e fez-se gente.Era uma galinha imponente.

Gostávamos tanto da Graciosa,da sua plumagem - sobretudo do seu

comportamento irreverente mas doce,do modo como pestanejava

os olhos amendoados e sacudia as asas.Era de facto a princesa do galinheiro.Ligeiramente anafada,solteirona,farto peito,pernas

consistentes,rabo de mulata cubana,simpática,trunfa esbelta e andar

sedutor.


Apesar de modelo ímpar - a Graciosa não punha ovos e todos

atribuiamos o facto não à Graciosa mas ao galo.

Na verdade o galo não cumpria um pormenor fundamental -

faltava-lhe quando cantava - as duas últimas notas musicais para

o concerto estar conforme a pauta.


Resultado - um dia decidimos substituir o galo por um tenor

e a vida pareceu dar-nos razão.


A Graciosa - princesa indigitada,começou a pôr ovos,como todas as outras - mas com duas gemas - isto é,mantinha a diferença.

Não cacarejava,falava com os olhos amendoados,fazia garatujas

com o bico nas paredes do galinheiro.Com a simplicidade e a sabedoria

dos iluminados começou a isolar-se - de tal modo que um dia foi galada

pelo tenor.Perturbada mudou de personalidade.Inesperadamente.

Admitimos que tão profunda mudança tenha a ver com o facto de ser virgem fora do tempo.

Certo é que se considerou violada e passou a ser arrogante,dissidente

e politicamente liberal.

Sentimo-nos traídos.

A princesa estava pedante e tresmalhada.Se fosse gente fumaria

"cohibas" não humedecidos,frequentaria nos casinos as salas de jogo,

tornar-se-ia meretriz e regaria a clientela com espumante barato.


Já não era uma metáfora era uma hipérbole.


Refletindo - concluimos que a Graciosa,de tão protegidadesde pinto

se tornou num Acácio com penas,num conde de Abranhos,num tartufo,

uma marioneta da cirurgia plástica.


Perante os factos decidimos - vamos comer a Graciosa.


Após alguns dias de preparos,convites e paramentos - o momento

politicamente organizado e religiosamente celebrado - estava na mesa

e na púcara.

Preparados para atacar o evento gastronómico eis que um pássaro

que nos pareceu ser exótico mas era tão só um residente pardal -

cagou no centro da mesa,precisamente na terrina da canja.


O Mário começou a desenhar a cena e a Maria João,antes das primeiras garfadas disse


Pai - parece que vamos comer a família.



Olhámo-nos nos olhos uns dos outros

e largámos os talheres.





sábado, 25 de agosto de 2007

EDUARDO PRADO COELHO








NÓS NÃO DEIXAMOS MORRER OS NOSSOS MORTOS



MESMO QUANDO EM VIDA NEM SEMPRE AO NOSSO LADO



VERGO-ME PERANTE A MEMÓRIA




terça-feira, 21 de agosto de 2007

O COMENDADOR ISIDORO

desenho de Mário Filipe








Mão amiga inscreveu na lista dos novos comendadores,para despacho

do senhor presidente - um "pato bravo" de seu nome Isidoro.

Admite-se em Cajados que a comenda lhe tenha sido atribuída apenas

pelo facto de ser um homem podre de rico e mecenas não se sabe de quê



Consta que chegava a um restaurante e quando lhe perguntavam



Vossa excelência deseja uma casta da Região Demarcada do Douro?

Sugiro um Touriga Nacional - casta nobre,rica em polifenois

e compostos aromáticos.Vossa excelência dirá.

O Isidoro,que agora se chama comendador,levantava as fartas

sobrancelhas,fingia pensar e respondia - sempre do mesmo modo

Traga do mais caro.



Tudo isto a propósito do "monte dos tesos" que o comendador

recuperou na aldeia de Cajados.Uma mansão para festejos hilariantes

aos fins de semana.



Um dia com os convivas já a destilarem,as senhoras a chapinharem

na piscina a tricotarem intrigas - o comendador chefiou um grupo,

azinhaga fora para substituir a placa indicativa da aldeia que deixaria

de se chamar Cajados para se chamar Monte dos Tesos.

Alertado e vigilante o povo arrancou a placa repôs a verdade.

Houve mesmo um destemido que se atreveu a gritar

Abaixo o comendador



Durante a semana a paz instalava-se em Cajados,onde habitava

o senhor Jacinto,homem estimado,trabalhador rural assalariado,

viuvo e com três filhos a cargo.

O pai saía ao nascer do sol,regressava ao pôr do sol e os putos

ficavam à solta.



Então não comem nada?

perguntava o senhor Jacinto

Não nos apetece.

respondiam em coro -o Tó,a Bia e o Perdigão.



A verdade dos factos



Os putos descobriram um postigo na casa dos jogos do comendador

e durante a semana invadiam ciclicamente a mansão para tirarem

a barriga de misérias.Abancavam à farta - do bom e do melhor.Só não

tocavam nas lagostas porque tinham medo dos bichos.

Os mais novos sentados à mesa,com toalha de bilros e castiçais,

eram servidos pelo Perdigão que ía dizimando o frigorífico por turnos.

Após o repasto dormiam a sesta refastelados na larga e fofa cama

rocócó do senhor comendador.Após a sesta,todos nus,tomavam banho

na generosa piscina e no regresso a casa ainda se atafulhavam

com "palitos la reine".



Um dia o comendador apareceu de surpresa,com um bando

de seguranças.Apanharam os putos.Lindos como anjos no olimpo,

a dormirem profundamente.Ressonavam como príncipes.O Perdigão

até assobiava uma espécie de tirolês.



Resultado

Queixa na GNR,os putos entregues ao pai que entretanto regressava

estoirado do trabalho.Tribunal - decisão do juiz

Tem dez dias para indemnizar o senhor comendador pelos prejuizos

- 500 euros.



Volvido o prazo,o senhor Jacinto não pode pagar e está em parte incerta.Os putos foram internados numa casa pia qualquer.



O povo está triste e a quotizar-se para pagar a dívida.



O senhor comendador continua em festa.







domingo, 19 de agosto de 2007

O FIO DA MEADA (2)

Caí do céu nos Açores,mais precisamente na ilha Graciosa

Calcorreei a lava petrificada,a geometria dos verdes bordejados
por firmes muretes de cascalho sobreposto

Observei o preto e branco tresmalhados na pele dos animais.

Ouvi o doce,lânguido e apelativo mugido das vacas em liberdade.

Desmaiei os pobres olhos no sucalco das espumas bravias,
insuflei os pulmões nos ares frescos e espectaculares dos moinhos
de vento e subi ao poema.

Quando vi tanta exuberancia,tantos silêncios silvestres e me fixei
num solitário burro cabisbaixo

admito ter ficado mais triste do que ele


segunda-feira, 13 de agosto de 2007

O FIO DA MEADA ( 1 )

Nove horas de voo.Cinco horas de diferença horária,mais duas horas
de táxi de Havana para Varadero.
A estrada latina,o táxi latia e eu bufava.Foi assim até Matanzas.

Zita - a motorista do táxi,perita em ultrapassagens pela direita,
ia atropelando um site-car superlotado.
Interrompida a viagem,seguiram-se impropérios gesticulados
que deslisaram para um diálogo fraterno,quando a motorista se identificou.

Apesar de tudo cheguei bem ao Arenas Blancas.

Reconhecido ofereci à senhora uma tee-shirt do Seixal Jaze.
A motorista,comovida não susteve uma finíssima lágrima de rum
e despediu-se com um solene "hasta siempre comandante".

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

ÁGUA DE MIM

La muralla/laluzdelasflores






Cantas e feres água de mim

nos meus claustros de vinhedos



As tuas asas de papoila silvestre

procuram alimento nesta graça

longe das multidões



procuram o ofício da luz

a candeia para lá de todos os silêncios

o meu regato preferido

para continuar a respirar-te por guelras



Por aqui água de mim passas devagar

corres tranquila

só para distribuires pela boca das sementes

um rasto de vida

sorvida no chão que pisamos



Ajudas-me a cantar e a ferir este silêncio

que me faz falta

para ti



segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O MAGNIFICO GALINHEIRO

desenho de Mário Filipe



Estava o magnifico galinheiro reunido nos poleiros tradicionais -

dramaticamente com poderes absolutos - flamejante e tartufo na discussão de mais um esquelético e estrábico orçamento restritivo

para a comunidade carenciada,quando aflorámos uma ideia antiga

e muito familiar do nosso quotidiano comum.


Como colocar um pauzinho nesta engrenagem?


Na verdade - apesar de tanto cacarejar aveludado,tinhamos quase afónico - um galo espartano - a chefiar uma tribo de 12 poedeiras

sequestradas.

Não foi por ser afónico,mas pelos seus tiques espartanos que sentimos

a necessidade de um tenor menos austero,para dar outra cor à vida

em comunidade.

Na verdade - uma coisa é ser chefe,outra é ser lider.Uma coisa é ser

empresário,outra é ser patrão,trabalhador ou empregado.

Entretanto o tempo passava inexorável e ninguém sugeria um Pavaroti

credível,democrático,sensível aos que mais penam - um tenor que desse a volta ao orçamento restritivo.


Viajámos um dia para o monte Barranco do Bebedouro e foi ali,

na delícia de uns pèzinhos de coentrada,que aconteceu uma conversa

interessante àcerca da arte de colocar pauzinhos nas engrenagens.

O amigo Anastácio que há muitos anos faz milagres de artesão com

o seu canivete de lâmina finíssima,levantou-se e disse com voz embargada

- Para o caso vertente,vou oferecer-vos um casal de pombos alentejanos da minha confiança.

Numa caixa de papelão,com respiradouros ternamente executados,

o amigo Anastácio ofereceu-nos a solução e todos ftcámos mudos e agradecidos.Assim - sem mais palavras.

Um casal de pombos.O Campaniço e a Soalheira.

A fêmea,plumagem cor da hulha.O macho,branco como a cal.

Lindos.Ela - olhos verdes alface,muito vivos,pernas esguias mas torneadas,rabo espetado,pescoço esbelto,ex-modelo em concursos

columbófilos.Ele - porte atlético,campeão de maratonas,de poucas

falas,tipo engenheiro nos excedentários da função pública.


Os novos residentes,oriundos de uma família numerosa,humilde e trabalhadora,foram instalados no magnífico galinheiro,pela calada

da noite,por uma questão de bom senso.

Tinham que adaptar-se e reagir à crise nacional do tempo que faz-

considerar o período da caça com os homens à solta - ao galo espartano

e até às poedeiras iludidas de quando em vez a chocarem ovos supostamente galados.


Ao raiar da aurora,verificámos que à mínima distração o galo malhava nos pombos que se levantavam do chão e cantavam,cantavam,

- cantavam hinos populares,criatividades amorosas.


O galo afónico e arrogante no preciso momento em que os pombos estavam a arrulhar - inesperadamente - libertou pela primeira vez na sua vida - um dó sustenido quase perfeito,e eu gritei

- Finalmente o galo cantou.


Retificámos imediatamente o orçamento restritivo.

Soltámos os pombos e as poedeiras.


O galo ficou a cantar sózinho.