segunda-feira, 28 de setembro de 2015

NO PESTANEJAR DE UMA VÍRGULA





Olho-te como se fosse a primeira vez

na verdade  a água 
corpo líquido de mulher
tem segredos escondidos no fundo das pedras
alimentos de fogo
talvez uma praia onde se fundem
areias e lábios
um piano de luzes
que determina o tempo das estações

Ainda bem que tens ilhas selvagens
sinais apócrifos que se desnudam
em gestos simples
no pestanejar de uma vírgula

Na verdade a água sabe rir e chorar
no espelho das próprias lágrimas
no rumor das maresias 
e eu descobri uma vez mais
que tens poros por onde respiras 
silêncios escarpas por onde escorrem salivas

que te ergues e desmoronas
abrigo e mensageira
te desprendes do chão
ou hibernas nos corais

Que bom ainda hoje
partilhar contigo este despertar
aprender pela vida fora a descobrir-te
como se fosse a primeira vez

deixar por um instante
a outra água
para os peixes se moverem


Eufrázio Filipe

"CHÃO DE CLARIDADES"
 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

O PÃO QUE LEVAMOS AOS LÁBIOS





Doem-me todos os muros
onde as silvas
se enleiam
mesmo que sejam
castelos
sibilinos nas ameias

Doem-me todos os muros
o mar inteiro
ancorado no cais
mesmo que benzidas as pedras
à revelia dos pássaros

Doi-me tudo no Outono
menos as romãs
a despontarem vermelhas
passo a passo

o pão que levamos aos lábios


Eufrázio Filipe
 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

PALAVRAS VERTEBRADAS





Benditas as palavras vertebradas 
silaba a silaba
o canto das folhas desamparadas
no alpendre
o uivo dos cães
a clarear sombras

bem escasso
este perfume de mostos
chuva lábios e pedras

este marulhar desabrido
à nossa porta
na livre circulação do vento

Eufrázio Filipe
 

sábado, 12 de setembro de 2015

INGREME O CAMINHO DAS PEDRAS






Estavam no cais
os barcos de remelas
etéreos
quando partimos
por sobre as águas
sem fim à vista

foi assim

lá onde os olhos sem amparo
se consentem demorados
assistimos à passagem
de um sopro de vento

Neste leito de sussurros
a primitiva chama
navegava
todos os degraus da escarpa

foi assim 

tresmalhadas as pátrias
chegámos à fala
de mãos dadas
no íngreme caminho das pedras


Eufrázio Filipe

terça-feira, 8 de setembro de 2015

UM HINO ÀS TEMPESTADES






Na tremulina deste mar
que não se consente agrilhoado
mesmo que seja breve o azul
no perfume das águas
mesmo que o cíclico pássaro
de plenas asas
adocique o bando
não te vejo a abandonar a luz
clara silvestre dos relâmpagos

o ar que respiras
pelas narinas do vento
continua a movimentar-se
agita as dunas
grita nas falésias
contra a absolvição dos destinos

submerso no chão das maresias
um dia virás à tona  tanger um hino
à ternura das tempestades 

o brilho dos teus olhos
de tão órfãos
ainda terão uma pedra

para atirar às estrelas



Eufrázio Filipe
"CHÃO DE CLARIDADES" 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

TIMBRES DE OUTROS MARES







Neste tempo de vindimas
decepadas as videiras
temos por hábito desenhar
lábios nos lábios
um mar arável

No chão da escarpa
pisamos uvas
provamos o sangue derramado
de asas abertas
uma vida quase inteira

e assim acordamos
a fazer versos
ou quase nada
anoitecidos a madrugar
timbres de outros mares


Eufrázio Filipe