segunda-feira, 28 de abril de 2014

NA LINGUAGEM DOS ESPELHOS







Silvestre a lamber o leito
por onde corre
num acorde de timbres
sereníssimo o rio
atravessou
passo a passo
a sombra das pontes

desaguou sem amos
no chão das marés

barco desgrenhado
quase perfeito
a lapidar as águas

Passo a passo
demorou-se por um fio
a subir às gáveas
precipitou-se
do último verso
do seu poema

mas resiste
olhos abertos
na linguagem dos espelhos

 

terça-feira, 22 de abril de 2014

ATÉ ARDER DE NOVO A MADRUGADA




                                          publicado no "A linguagem dos espelhos" 1982



Arde a madrugada na incandescência
dos nossos lábios
tangem cordas de oiro e prata
os nossos dedos

transportamos anéis de fogo
no interior dos corpos
labaredas cingidas
nas línguas

No regresso é o caminho que nos trás
exaustos de muitos pesos

rangem os corpos
mas dos lábios
saltam faúlhas que nos alimentam

até arder de novo a madrugada


 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

À PERGUNTA DE OUTROS MARES



                                                                 " Chão de claridades "



Quando foi urgente criar um deus
as uvas ainda não estavam maduras
no corpo das videiras

inocente subiste ao púlpito
das vinhas decepadas

improvisaste um sermão
ergueste o cálice
e a companha exausta aprendeu
que nada é perfeitamente inútil

após as vindimas
bebemos do mesmo vinho

foi quando enfunaste as velas
começaste a despontar relâmpagos
nos mastros mais altos

quando afloraste o chão com um beijo
partiste sem destino
por sobre as águas revolto

à pergunta de outros mares


 

sábado, 12 de abril de 2014

ATÉ SER OUTRO DIA






Mesmo que nos queiram
roubar a luz
não conseguirão
amordaçar a voz
que rebenta do chão
em flor
às mãos cheias

Abril respira a céu aberto
contra nevoeiros
mares desgrenhados
e outros destinos

Ainda há crianças
a plantar cravos
no coração das aves

a levar o pão
à boca das sementes

até ser outro dia


 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

FLOR DE ABRIL



                                                            publicado no meu "chão de claridades"
                                                                                                     (reconstruído)

 
                                      


Hoje vi com os meus olhos
uma santa mulher
asfixiar um pássaro
nas mãos
só para desenhar no chão
a dor que sentimos

chamei-a
para deixar nas areias
um beijo côncavo
até a memória arder
os últimos barcos
as algas discernirem
de olhos abertos
todos os ritmos das marés

chamei-a
para esgrimir contra
a invenção dos destinos
erguer o seu corpo
de grânulos
e recolher todos os beijos disponíveis

chamei-a
para acordar o sono deste chão
libertar os pássaros

Hoje vi uma mulher
amada
esculpida na praia

a despontar na areia
inacabada
flor de Abril



 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

À SEMELHANÇA DOS PÁSSAROS



 
 
 
 
Chovem primaveras na  boca dos amantes
pedras cantadas em surdina
que aguardam um sinal para voar
 
sofridos
à pergunta de um relâmpago
um asseiro de luz
nos céus desalmados
 
sonâmbulos nos jardins
amantes em flor
cantam embargados
e ao cantarem resistem
 
metem na voz
um sol de mãos cheias
à semelhança dos pássaros
 
lábios nos lábios