domingo, 28 de agosto de 2011

TANTA LUZ


                                                                          Gaudiol

 

Junto ao portão
os cães ladravam
aos outros cães

porque havia um portão
de faúlhas
e a noite acordava
com pássaros claros

E agora?

neste restolho de latidos
e gestos inacabados
que hei-de fazer
a tanta luz?

que hei-de fazer
quando te deitas
nas escadas do templo
a tecer fios de música

e os cães não se calam?



sábado, 20 de agosto de 2011

DULCÍSSIMA


                                                                            óleo de Jean Jaques Henner

 

Por falta de um sopro
no marasmo do cais
adormeciam barcos

banhavam-se em salivas
à vista dos mastros
quando amanhecida
silaba a silaba
junto ao pomar dos medronheiros
numa cadência de asas e passos
adocicavas na margem
imaculadas claridades

Com o tempo verifiquei
que eras tu vertebrada metáfora
a folhear um compêndio de azuis
sem destino

eras tu dulcíssima
tão líquida por entre os dedos
que adormecias os barcos



domingo, 14 de agosto de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (5)





                                                    publicado no meu PARA LÁ DO AZUL

Os cães choravam em silêncio
e eu não sabia porquê

Pensei no pobre limoeiro a afundar-se
lá onde nidificam toupeiras
ao entardecer
na estrêla persistente
que viceja à noite no portão
nos olhos claros de um certo azul
que ilumina a casa
no desfolhar emsombrecido
das roseiras

Vasculhei tudo
invadi searas proíbidas
até ao mais íntimo da pele

pó sombras sonhos

Perguntei-te - quando desaguas?

e tu desaguaste à janela
a marejar entristecida
e eu não sabia porquê

Foi quando os cães se levantaram
para soltar os pássaros



domingo, 7 de agosto de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (4)





Quando olhava para os céus via um abismo azul que a atraía e talvez por isso sempre que assistia a um concerto de pássaros despertava para o desejo de voar.

Limitada aos seus gorgeios na procura quase obsessiva de apanhar um pássaro já tinha experimentado tudo - quase tudo.
Subiu árvores inventou destinos empoleirou-se nas escarpas quando o vento soprava forte nas piores estações - até no brilho lúcido dos olhos dos ratos quando indecifráveis trepavam paredes e desapareciam pelas fissuras do ar em movimento.

Um dia ouviu como nunca tinha ouvido vozes a espargirem sons como se fossem palavras a estilhaçar silêncios.

Agachou-se debaixo da figueira paciente como sempre não para voar mas para cumprir um desígnio - comer um pássaro.
Estava-lhe no sangue querer voar mesmo sem asas. Comer um pássaro.

Na verdade se os rios insistem correr para os mares porque não comer um pássaro fechar os olhos e voar a estilhaçar silêncios?

Agachada debaixo da figueira passou uma eternidade a ouvir gorgeios e a vê-los de ramo em ramo a comer figos e a tracejarem horizontes.

Entristecida sentiu-se uma gata a imaginar-se pássaro a regorgitar memórias que não passavam do chão.

Uma vez mais foi assim no êxtase de um belíssimo concerto de gaios e melros.
Inexplicavel mente sentiu um arrepio no corpo a invadir-lhe a alma - e foi assim num rasgo de lucidez que concluiu

a vida mesmo com fragilidades pode ser mais que o voo de um pássaro mesmo quando se juntam para cantar.

E foi assim que assumiu a sua condição.

Filou o auditório e lançou~se vertiginosa sobre um ratinho do campo que atento fruía do grupo coral.

Abocanhou-o sem o ferir.
Cabisbaixa transportou-o para o alpendre onde dormitava o Dique.
Miou com o rato na boca.
Chamava a atenção do Dique que se levantou com outros azuis nos olhos.
O Dique lambeu-lhe uma orelha abocanhou-a sem a ferir e transportou os dois para debaixo da figueira onde ainda permaneciam tenores a improvisar infinitos do belo canto que nos ensinavam a voar.

Deitámo-nos a ouvir o concerto dos pássaros
até adormecerem os ponteiros do relógio .