Hoje vi com os meus olhos uma santa mulher asfixiar um pássaro nas mãos só para desenhar no chão a dor que sentimos
chamei-a para deixar nas areias um beijo côncavo até a memória arder os últimos barcos e as algas discernirem de olhos abertos todos os ritmos das marés
chamei-a para esgrimir contra a invenção dos destinos erguer o seu corpo recolher todos os grânulos disponíveis
Hoje vi uma mulher amada esculpida na praia a despontar nas areias
A poesia foi o grande apeadeiro da sua vida. Poesia que reescrevia em cada livro para conforto das palavras. Poeta de galáxias, escarpas e mares infinitos, foi visita assídua de quotidianos, silêncios em voz alta. Morreu o Herberto de tantos ofícios, vive a sua poesia.
um dia escrevi o amor é revolucionário e uma senhora que esculpi nas areias da praia, logo se levantou para me dizer O amor é revolucionário? Interessante. Importa-se de me explicar claramente a sua ideia?
e eu respondi que sim.
Meu amor, nesta ilha rodeada de sonhos, se tivéssemos um barco, ai se tivéssemos um barco, como seria inútil este mar - lutaremos como somos e onde estamos.
A senhora de pé nas areias adiantou que as realidades quando sonhadas por vezes são mais verdadeiras - e ainda acrescentou - gostei de o ler, só é pena ser comunista.
Olhei-a nos olhos e respondi que não queria salvar o mundo só ajudar. A poesia é um prazer para quem escreve mas um desafio para quem lê. Tudo se move até o vento. Por vezes um poema vale por um verso e um verso uma eternidade.
A senhora ainda de pé disse não ter entendido mas que as palavras eram lindas.
... e foi assim ...
neste chão de claridades, por mares nunca antes desgrenhados, subimos à nossa escarpa preferida para colocar um beijo no mastro mais alto da vida e dizer-lhe ao ouvido poemas ainda não escritos, presos a um sopro de vento.
O granizo caía abrupto nas nossas vidas,queimava-nos a alma até aos ossos. Nunca mais chovia água de beber. Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão. O mar vadiava nas frinchas das falésias e os barcos ancorados, aguardavam nos mastros outros ventos. Nas ruas havia uma certa efervescência . Um respirar ofegante. Nas ruas as esquinas dos prédios despovoadas para os cegos abrirem os olhos. Nas árvores nem uma folha para esconder o arrepio dos pássaros. Nem um piar. Nem um sussurro. Ao desnascer da noite alguém acendeu um fósforo e fez-se madrugada. Os rios despertaram. O mar deu sinais de chamada. O vento soprou para um afago de velas e os barcos partiram para a faina. A Primavera por cima dos escombros convocou-nos para um concerto ao ar livre. As flores despontaram nas nossas mãos, a cantar com os pássaros, como se fossemos livres e somos.