Numa lufada de mares desgrenhados abri a janela para recolher o vento Extintos os presépios regressámos à síntese da tua nudez beijei o espelho onde viajam transmigradas memórias quase perfeitas Neste palco abre-se o pano cai o pano não existe pano o tempo passa regressámos ternos e mudos às precárias definições ao corpo lindo das metáforas Eufrázio Filipe
O Inverno purifica. Sacode-se nas árvores penadas, inventa polícromos arco-iris, manifesta-se lúcido contra a perfeição, faz trejeitos ao rosto. Ri-se nos olhos de toda a gente. Lá no alto, por cima das nuvens de chumbo, levanta a voz dos relâmpagos e às primeiras pancadas de Moliére, abre o pano.Vem ao palco e anuncia: Senhoras e senhores a fábula"é uma pintura onde podemos encontrar o nosso retrato" Que dia é hoje? Silêncio. Senhoras e senhores ides assistir à mais fabulosa história da minha estação. As luzinhas furta-cores são as mesmas. O mesmo burro, o mesmo pinheiro,o mesmo musgo, as mesmas pedras, a mesma estrelinha no presépio. O mesmo rebanho, os mesmos pastores, a mesma palha, o mesmo bafo. Ides ser cúmplices dos animais,dos anjos que vão cair nas chaminés, nos sapatinhos dos meninos ajoelhados- até que o galo cantará. Lá fora as ruas estarão um sonho - até nos olhos dos outros meninos, na montra dos céus. Tudo será luz nos corações vibrantes, menos nos olhos sem abrigo. Aqui não há tempestades, só ventos fortes, água abrupta e belos relâmpagos. Amai-vos uns aos outros Eu sou o Inverno. Não creio, mas o Natal vai começar. Eufrázio Filipe "CAÇADOR DE RELÂMPAGOS"
Nas margens do rio onde habito respiram pautas desertos retratos íntimos de flores a preto e branco repousam mãos famintas Nas margens deste rio quando a noite amanhecida não dorme ouvem-se pêndulos vagares cadenciados agitam-se os dedos o tempo ousado dos poetas que não eu artesão de metáforas No fulgor das águas desprendo-me a profanar metáforas para ver mais claro o teu corpo antigo baloiçar nas paredes da casa Eufrázio Filipe "Chão de claridades"
A pedido do meu neto reedito uma das dez" garatujas "que lhe desenhei por escrito Na rua chovia. As folhas das árvores caíam. Estávamos no Outono, mas hoje acordei com um sonho lindo. Apeteceu-me correr no jardim da escola, mesmo pelo meio das flores. Eu sei que não devia, mas apeteceu-me. Estou a falar de um sonho, porque a minha escola não tem jardim com flores. De repente tropecei numa flor com espinhos, caí, feri-me numa perna. Ali fiquei no chão com muitas dores a chorar. De repente apareceu um cão e assustei-me. Não sabia o que fazer. Ele olhou para mim e lambeu-me a ferida. Cocei-lhe as orelhas e abanou o rabo de contente. Já acordado pensei no meu sonho lindo e disse Nunca mais corro pelo meio das flores, mas quero ter um amigo de quatro patas Eufrázio Filipe