Quando as mãos no barro constroem sonhos de todas as cores e no branco de uma folha de papel se desenham palavras inteiras vem à tona a luz muito para lá da aparente insignificância de plantar uma flor mais vermelha que os teus lábios Quando o vento sopra por entre os dedos é urgente remar contra os medos seduzir a boca das sementes eufrázio filipe
Há muitos anos comprámos na Praça de S. Marcos uma boneca que fingia ser anjo e tocava violino Colocámo-la na mesa de cabeceira porque afagava bem as cordas e nos despertava Todas as manhãs lhe desejávamos bom dia num ritual ininteligível e tudo ficava mais claro Ainda hoje com outros olhos começámos a ver os mesmos retratos nas paredes do cais a dardejarem na intimidade dos sonhos com outros olhos pequenos deuses tangíveis plantámos árvores e barcos e começámos a beijar no chão que pisamos as belas flores do jacarandá Ainda hoje nesta torre de menagem bastou um sopro para agitar os pássaros nos mastros mais altos e a boneca na mesa de cabeceira eufrázio filipe
Sincopada a chuva caía sacodia as folhas da cerejeira acariciava o despontar das camélias quando pressenti que estava no avesso do tempo que faz já tinha aberto as portas mas tu entraste pela janela do vento percorreste todos os silêncios da casa em espirais vertiginosas até pousares devagar sobre a mesa do alpendre trazias nos olhos um sol de mãos cheias um certo cansaço no trinado da voz longas maresias afaguei-te a plumagem à vista dos cães e disse baixinho para não acordares a casa é uma máscara todas as casas são máscaras que assustam os pássaros menos a ti eufrázio filipe
Agora que estão confinados os santos e as marchas populares desconfinaram as sardinhas. Proibidos os fogareiros a carvão, resta-lhes as latas de conserva e as máscaras. Maldito vírus eufrázio filipe
Nas margens do rio onde habito respiram pautas desertos retratos íntimos de flores a preto e branco repousam mãos famintas nas margens deste rio quando a noite amanhecida não dorme ouvem-se pêndulos vagares cadenciados agitam-se os dedos o tempo ousado dos poetas que não eu artesão de metáforas No fulgor das águas desprendo-me para ver mais claro o teu corpo antigo baloiçar nas paredes da casa porque tudo é sempre novo eufrázio filipe