Na alquimia do tempo que faz, há sempre um albatroz que atravessa as arcadas da memória, desfaz-se em gestos de ternura, dissolve-se no pôr-do -sol, invade-nos o sonho, passo a passo. - Desejo que germines em vagas nas arribas, que rebentes a marulhar no labirinto das areias. - Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas. Desejo ficar aqui no perfume dos limos, mesmo que as vagas só despertem por sobre os restos do último naufrágio. - Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos. - As melhores viagens acontecem sempre antes da partida e no regresso. No ciclo das marés. Só assim consigo partilhar o ardor das velas do nosso mar. - Pareces a ministra que conheci no dia da remodelação do governo. - Meu amor rema. - Não consigo dormir. - Vamos fazer amor? - Só nos espelhos. - Hoje não estou a gostar do modo como os espelhos nos olham. Este rio está uma sopa. Ressoa brando nas fissuras das pedras. Repara como a praia deserta se amontoa de areias sem abrigo. Inesperadamente um albatroz poisou majestoso aos nossos pés. Fixou-nos com olhos vivos e perguntou-nos baixinho num afago de asas - de que cor são os meus olhos - e tu não soubeste responder. - Apetece-me viajar ainda mais . Porque não vamos ao Bugio? Construímos um barquinho de papel e partimos ao sabor da brisa. Lá estava sentado nas águas do rio, imponente, coluna na vertical e sereno. Sábia fortaleza, sempre alerta, - hoje um farol a piscar os olhos no estuário do Tejo, como nós, ilhas adjacentes. - Vamos fazer amor? - Ainda não disseste a cor dos meus olhos. Eufrázio Filipe
Parti em viagem.com todo o tempo,por vales,rios e montes - mapas rasgados a despertar azinhagas e amoras silvestres. Tropecei numa aldeia - casas dispersas, outras geminadas, um café, uma taberna,uma mercearia, uma capela, um pelourinho e um apeadeiro de caminho-de-ferro. Uma aldeia linda, afagada por canaviais, chorões e o cantarolar de um riacho onde corriam águas cristalinas. O Café Moderno exibia um jogo de matraquilhos, seis mesas, e um rádio antigo em voz alta. - Como se chama a vossa aldeia? - Bemposta. Diz a lenda que uma senhora real, muito bem vestida e triste, visitava aqui um aldeão. Vinha de charrete e depois partia, nua e sorridente. O Alexandre é que sabe explicar estas coisas. Deve estar no apeadeiro. No apeadeiro encontrei o Alexandre - um velho que se recusava a ser velho, sentado num banco em frente à linha dos comboios. - Velho não, um jovem com experiência. Um dia quis ser músico, precisava de dinheiro e parti. A minha vida foi sempre partir e chegar. Emigrei para uma grande quinta, sem contrato, perto de Marselha. Uma vez por ano trabalhei ali na apanha da maçã. Três armazéns albergavam o pessoal - portugueses, espanhóis e polacos. Os que chegavam primeiro, apanhavam camaratas - os outros dormiam no chão. Quase sempre chovia nos armazéns. No primeiro ano rasgou-se o meu impermeável . Não fácil resistir, mas resisti. Cada um tinha um "rego" com cinco quilómetros de macieiras. Colocávamos o cesto de verga, com alças, amarrado à cintura, subíamos e descíamos o escadote, até apanharmos 350 kg por dia. Quem mais apanhava mais ganhava. - Mas quem mandava em si? - Eram as maçãs. Enquanto houvesse uma maçã na árvore, quem mandava era a maçã. Ouvi dizer que a liberdade não cai do céu, conquista-se no chão que pisamos, mas no meu caso só de escadote, em cima das macieiras. À noite cada um fazia o seu repasto. Estoirados dormíamos à pressa. Só tínhamos o domingo para ir aos molhos no atrelado do patrão, abastecer-nos para toda a semana e divertir-nos à chegada no armazém dos polacos. Os tipos estacionavam um Volkswagen a cair de podre junto do armazém e ligavam o rádio. Uns dançavam com as mulheres que por ali apareciam, outros embebedavam-se e jogavam às cartas. - E no dia seguinte? - No dia seguinte, as maçãs geladas entravam-nos pelas mãos até aos ossos. Um polaco que se dizia iluminado por Deus gritava todas as manhãs - "Estou no topo do mundo" . Um dia caiu do escadote, partiu os dentes e deixou a religião. Nunca consegui dinheiro suficiente para ser músico, mas fiquei para sempre com uma mulher no coração. Uma santa mulher que me ensinou a contar pelos dedos todos os silêncios. E a cantar. Mais linda que a Bemposta. Parecia um pássaro azul. Sou caçador de relâmpagos e o amigo que faz na vida? - Sou artesão de metáforas. Eufrázio Filipe
A noite estava tão escura que nem parecia noite lambidas as sombras ficou um rio inteiro a memória de uma luz vertebrada em transito à flor das águas Eufrázio Filipe
Libertas-te por gestos nas margens dos salgueiros recolhes céus que desabam no refúgio deste chão Quando chove na folha de papel e se desmoronam as palavras és o rio que mata a sede timbre de outros mares ergo-te pela cintura és o meu rio vicejas num bailado de cores lúcidas Eufrázio Filipe "Chão de marés"
Bátegas de lume branco na crista das ondas tilintavam no bico dos teus seios lubrificavam a terra gretada quase divinas fui ver o mar simplesmente chovia na boca das sementes Eufrázio Filipe