republicado Neste porto desobrigado de fronteiras e outros céus vem à tona a energia imperecível dos desertos o perfil escarpado da luz fragmentos de círculo Nesta apoteose de neblinas defino a brancura do teu corpo de pátria movediça como um prado onde refulgem transfigurações de barcos rumores de outros mares Amo esta janela com vista para o vento onde é possível ser eterno por um instante povoar o silêncio errante das metáforas e viver apaixonado no pulmão das marés
A minha escarpa tem uma janela para o vento entrar de preferência com relâmpagos. Quando troveja inconformado abro a porta que dá para o alpendre e os "Serra da Estrêla" vertiginosos avançam amedrontados. Aninham-se nos tapetes da sala. De alma lavada e farto pêlo, entram casa adentro, sacodem-se, vivificam as paredes onde me acompanham um óleo do Kiki Lima, outro do Albino Moura, pratos alentejanos, uma falua em casca de ostra, uma estatueta da Papua Nova Guiné, o relógio de pêndulo, um poema do Eugénio de Andrade. Quando troveja e os céus se derramam, a minha escarpa alumia-se. Os "Serra da Estrêla" deitam-se e ressonam nos tapetes até eu pegar no sono e acordar a fazer poemas ou quase nada. Lá fora, imperturbável (e)terno a dizer coisas improváveis - o meu cão de barro - sem medos, resiste em vigília ao tempo que faz.
Cantadeira de histórias inventadas decidiu fazer uma viagem de sonho, à semelhança dos pássaros. Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "hotel das dunas". Viajou por sobre mares e relâmpagos numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho escravo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do chamado aeroporto. As cabras fugiam e a avioneta aterrava. A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas e cúmplices dos pescadores de lagostas que só abriam os olhos no chão das águas. Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna lhes aflorava o corpo. Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" que espontâneo medrava a espaços na paisagem deserta - mas à chegada da senhora choveu com abundância e o povo generoso saíu à rua hilariante. Houve quem tomasse banho nu em cima dos telhados a proclamar a independência da ilha. Quando a senhora chegou entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos, louvores, preces e andores. Anos volvidos a senhora ali ficou encantada a despertar silêncios repetidos, a hastear a voz nas memórias da chuva. Em noites de lua cheia, cantadeira e santa, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende mas todos aplaudem. Chamam Dona Arlete à senhora das meias pretas. Acreditam que vai de novo chover na boca das sementes - e assim vivem pobres felizes de joelhos nas movediças areias. Até ser madrugada.
publicado no "Presos a um sopro de vento" POÉTICA EDIÇÕES
Quando chegaste sangravas de uma asa menina dos meus olhos pátria efémera a rasgar palavras despida de tudo regressaste ao concerto dos meus silêncios preferidos vestiste a cal de branco num véu de noiva e escreveste uma frase trinada nas paredes da casa que ainda hoje conservo no coração das pedras há pássaros em riste
No tempo das romãs para alumiar o voo dos pássaros tilintam sinos no bico dos teus seios cúmplices (e)ternos no baloiço das marés esmaiam barcos numa campânula de sons desnuda-se em relâmpagos a vertigem da luz