quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A SENHORA DAS MEIAS PRETAS



                                                               oleo de Paul Lourenzi

Ao som do Gregorian Chant, no Monastery of Montserrat, estava eu a saborear o cd , a ver na minha frente, caírem aves do céu, que mais me pareciam estrelas.
Na verdade estão sempre a cair aves neste chão, que as fecunda, recolhe, sepulta.
Na verdade neste chão de asas e mares desgrenhados, flutuamos tão leves que nem a morte sente os nossos passos.

- Cão de barro?
- Perdão, as estrelas também se conquistam, mesmo as que caem do céu. Foi precisamente por isso que decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro.
- Decidiu?
- Sabe, até para amar é preciso ser competente e tomar decisões. É verdade decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro e solicitar a sua presença  no meu gabinete de trabalho. Acredite que tenho necessidade de partilhar o poder no meu último despacho. 

Especulei com a memória e recordei uma outra história que inventei a que dei o título de Sim Senhora Ministra. 
Entretanto a lua estava cheia e um vulto elegantíssimo percorria a azinhaga desde o portão até à casa.
Obviamente o portão estava no trinco e o cão preso.

O Dique- observador de silêncios gregorianos - permitiu que o vulto se  aproximasse, mas não deixou de roer a corda. 
No chão da azinhaga - um som cadenciado - uma espécie de toc-toc-toc na direcção da casa.
Agora sim mais nitidamente, o vulto parecia um espaço habitável, uma mistura de sombras eróticas. 
Exibia quase provocadora um caminhar de ancas sofisticado e o clássico aroma do Chanel nº5  trepava as árvores, adocicava os pássaros. 

- Senhor, não é um assalto. Tomei a liberdade de invadir pacificamente o seu espaço para lhe fazer um convite personalizado. 
- Foi um risco senhora. Aqui quem morde é o dono. 

No dia e religiosamente na hora - lá estava eu com o meu cão de barro, no seu faustoso gabinete de trabalho. 
Decidida, varreu para o chão toda a papelada, arquivada à vista na larga mesa de reuniões.Colocou na aparelhagem um cd e o reóstato no lusco-fusco . Pegou docemente no Dique.
Subiram para o tampo da mesa e aí dançaram soltos, como as estrelas, cabeças a tilintarem nos cristais do lustre. 
Exausta largou o cão e convidou-me para um moscatel roxo. 
Sentada no sofá, saias arregaçadas, colocou uma bela caneta de tinta permanente , cravejada de brilhantes e aparo de ouro legal , entre os dedos do pé direito e assinou devagar mas com determinação o seu último despacho  oficial. 

" a partir de hoje, sou a senhora das meias pretas " 


                             

36 comentários:

Sensualidades disse...

lindissimo

e sempre de salto

Bjinhos
Paula

Olinda Melo disse...


Uma série de absurdos simplesmente magistral, caro Mar. E no reino dos absurdos tudo é possível.

Aves que caem do céu como estrelas, um cão de barro que se decide amar, prendê-lo com se representasse perigo, o Chanel que trepa as árvores, o dono que morde,o pormenor do reóstato, o despacho tão peculiar e escrito de forma ainda mais peculiar.

Fantástico!

Meu amigo um dia destes hei-de vir buscar algumas palavras suas para enfeitar o Xaile de Afectos que estou a tecer. Permite-mo?

Abraço

Olinda

Mar Arável disse...

Olinda Melo

Apreciei o seu comentário
Claro que pode utilizar as minhas palavras

Janita disse...

Inverosímil, mas muitíssimo interessante e imaginativo, este texto.
É bom sorrir com estórias fantásticas!
Fazem-nos evadir da monótona realidade.

Um beijo.

Daniel C.da Silva disse...

Um texto encantador, que começa logo de forma sugestiva... Muito bom...

Vítor Fernandes disse...

Não é excelente, é soberbo. E para quem dança com cães de barro, meias pretas ficam-lhe a matar. Espero que o dono não tenha mordido demais. É que não despacha quem balanceia as ancas daquele jeito. Nem como primeiro despacho.

Lídia Borges disse...


Acontece, por vezes, que os "absurdos" ganham sentido, quando impregnados de uma certa realidade sugerida pelo texto ou (re)criada pelo leitor.
Assim se cumpre o contrato de leitura, assinado pelos intervenientes na comunicação: autor/texto/leitor.

Considerações literárias à parte, são sempre momentos de fruição e aprendizagem, o que levamos daqui.

Anónimo disse...

Lindo. Muito bem escrito. "Imagens" da escrita fabulosas, mestria e encanto. Senaualidade, o domínio perfeito dum mundo irreal e contudo tão quase tocável e "aceitável" como normalidade. Adorei! Fantástico. Um bfsemana!

Mel de Carvalho disse...

parte integrante de uma obra que tanto gosto me deu prefaciar, o seu "Caçador de Relâmpagos", este conto, como a Olinda referiu, é um sucedâneo de absurdos magistralmente narrados.

foi um prazer relê-lo, estimado Eufrázio.

abraço amigo

Mel

Pata Negra disse...

É mais fácil existir uma estrela com o teu nome, duas meias pretas à tua espera do que existir um cão que responda quando te chamam!
Porra! não percebi nada da história! afinal, quem é a senhora???
Um abraço e saúde

Mar Arável disse...

Pata Negra

Um dia talvez ~vais perceber
o que não quiz dizer
tão so aflorar
e quando perceberes será um espanto

AnaMar (pseudónimo) disse...

quando o espanto não surpreende porque espantarmo-nos é a delícia de sentir o sangue a ferver.

de absurdos, está a vida repleta. estes são magníficamente orquestrados num tango em que as meias pretas exigem saltos altos.

Adorei.

ana disse...

Um texto surpreendente. Um pouco fora do que habitualmente nos oferece.
Um último despacho de poder ou de amor?

Bj. :)

jrd disse...

Óptimo!
Uma aproximação deliciosa ao surrealismo.
Recuperaste bem o ambiente anterior. Deves continuar.

Abraço

Branca disse...

Ainda um dia destes hei-de descobrir e ler este "Caçador de Relâmpagos", que muito curiosa me deixa perante os lindíssimos excertos que já aqui foram publicados.

Beijos
Branca

Manuel Veiga disse...

assim se decide o destino doa cães (de barro) e a suave textura das meias (pretas).

estou certo que as pernas da augusta senhora o merecem.

saudo o regresso a este registo.

abraço, meu caro Eufrázio

Mª João C.Martins disse...


Há "absurdos" que são o que parecem, e outros que apenas assim se vestem, para que vejamos que não o são.

Muito bom!

Um abraço

www.amsk.org.br disse...

E ainda dissem que as meias pretas sairam da moda...

Mandamos no mundo, isso sim.

bjs nossos

:.tossan® disse...

Um belo conto e com elegância das meias pretas.

Justine disse...

Uma estória surrealista ao jeito dos tempos que vivemos...

Sónia M. disse...

Ha que saber vestir-se de absurdos, para poder dar algum sentido às coisas. Fantástico, adorei.
Fiquei com vontade de caçar o "Caçador de Relâmpagos".

Beijo
Sónia

Rita Freitas disse...

Muito interessante e com uma certa magia!

Gostei imenso de ler.

Bjs

Sandra Subtil disse...

"Na verdade neste chão de asas e mares desgrenhados, flutuamos tão leves que nem a morte sente os nossos passos. "


Tudo dito!

Vento disse...

da elegância da imagem à elegância das metáforas
um "pisar" dançarino
deslizar sensualissimo na passerelle poderosa do amor
onde
"nothing else matters"

belissimo, Eufrázio
um beijo

Anónimo disse...

A sua escrita é muito cativante, além de linda.Gosto muito de ler.

Beijinhos.

irene alves disse...

Então por enquanto fica o espanto...e pensarei na senhora
das meias pretas a despachar...
Como sempre muito bem escrito por
si. Só os escritores têm tanta
imaginação!
Beijinhos
Irene Alves

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Só quem sabe consegue escrever assim e eu adorei conhecer mais esta faceta do Poeta.


Um beijinho
Sonhadora

JANE GATTI disse...

É na dimensão da arte e da criação estética que as palavras assumem compromissos, fugindo do que é esperado, do que é certo, do que é errado. Nessa dimensão tudo é possível, nada é absurdo, tudo, simplesmente é. Gostei muito. Abraços.

Ailime disse...

Um texto singular, de uma elaboração requintada, que apreciei imenso. Bj Ailime.

lis disse...

Nada surpreendente num 'mar arável'.Faz-me lembrar a poética de um conterrâneo que diz que 'a expressão reta não sonha' e é preciso transver o mundo.
_ quero muito é ficar apreciando a 'senhora das meias pretas' e claro seu equilíbrio versátil.
abraço

Sopro Vida Sem Margens disse...

curiosamente fora do registo que nos tem proporcionado e habituado...todavia gostei das imagens que incidem sobre o fantástico texto...Obrigado pelo momento!

Rogério G.V. Pereira disse...

Tão distraído com relampagos
Deixei passar este

Despertei
não sei se com um trovão de meias pretas
se com o ladrar do Dique

OceanoAzul.Sonhos disse...

E tudo poderá ser aquilo que imaginamos. Permitamos que as palavras se aproximem e nos despertem.

Abraço
cvb

Canto da Boca disse...

Para que serve a criação do poeta, senão para nos salvar das garras do cotidiano sem cores e mistérios?

;)

Anónimo disse...

Esta "história" está sublime
Bem melhor que a outra
Gosto mais
Se eu pudesse
assinava o despacho

princesa

Anónimo disse...
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