sexta-feira, 13 de julho de 2007

O VOO DO MOSCARDO

desenho de Mário Filipe




Após o repasto,dispersaram os convidados e alguém se lembrou de

Rimskikorsakov.

A noite - quente -esplendorosa e sempre poética caía em nuances

polícromas - as cigarras ensaiavam cânticos sedosos que afloravam

a folhagem.O silêncio melódico estava reposto e a lua cheia tão linda,

desenhava no chão os recortes da casa,iluminava os nossos corpos.

Cantava.

Estávamos no campo,no mar arável das videiras.

Apesar do êxtase a família residente ainda se propôs ouvir o espargir

da água na rega automática.

Entretanto a paz onírica foi interrompida abruptamente e a família

unida - declarou caça a uma mosca varejeira que distraída das regras

democráticas entendeu devassar a cozinha.

A mosca,de facto,era um espectáculo - uma verdadeira besta de insecto.Enorme de asas,gorda,cor do petróleo,patas felpudas,celulite irreversível.Uma suculenta matrona.

Alguém afirmou ter-lhe visto uma cremalheira panorâmica de alvos

dentes aguçados.Na verdade não tinha lábios - exibia com mau gosto erótico uma beiça,tipo ventosa e cheirava a orçamento do estado.

Resultado - mobilização geral.

Em zig-zagues acrobáticos sobre as nossas cabeças,bufava,zunia,

zumbia zumzuns,riscava o espaço com uma baba fluorescente.Quase

política de direita,esfregava tímida as patas dianteiras e discursava arrogante sem aplausos nem substância,ao seu jeito - fluente palha

e em falsete.

Onde poisava deixava marcas,ameaças,impropérios,prepotências

e algumas rezas.Mostrava de quando em vez os olhos fulvos em desafio à lua cheia.A espaços tremulava as asas que pareciam bracinhos,como se fosse uma libelinha.Queria não parecer uma mosca varejeira.

Conclusão - na ausência de uma política coordenada e eficaz para a segurança dos cidadãos - voluntários - movemos-lhe caça cerrada,

meticulosa,com estratégia e tácticas cientificamente aceites na comunidade europeia.Utilizámos códigos em surdina,transmissões

gestuais - armas em riste.

Para a família a questão era tribal e honorária.Fervia-nos o sangue

nas coronárias e houve mesmo alguém que gritou - abaixo a mosca,

viva a liberdade.

Enfim - até o doce de tomate ,caseiro,que demorou à nossa avó seis

horas a cozinhar em lume brando,colher de pau em tacho de barro -

tomates sem pele nem graínhas,ao som da música - até o doce de tomate,cozinhado como quem vai a Fátima a pé lhe oferecemos de bandeja.

Demos-lhe poesia de Florbela Espanca,fizemos-lhe a mesa,demos-lhe

cama e roupa lavada.Estudámos em concílio improvisado o comportamento social dos insectos - chegámos mesmo a ler algumas

crónicas do Eduardo Prado Coelho - tentámos em pausas consensuais

alguns contactos políticos.

As incontronáveis férias são assim.As lojas do cidadão ficam desertas

ficam abertas apenas as maçónicas.O país encerra para transpirar e

até os políticos são considerados filhos de deus.

Entretanto a perversa mosca voejava na cozinha,mobilizava a família.Por vezes aparentemente brincalhona - saltitava nos ponteiros do relógio - escondia-se no buraco da fechadura da porta,nos buracos do queijo flamengo,nos póros da nossa imaginação.Formigava no pingo de suor que escorria lento,curto e grosso pela orelha da avó e em raides

fulminantes,tresmalhava,espreitava e sumia-se como o ar em movimento.

Na sala ao lado - a rádio anunciava mais um ataque à função pública

e a verejeira,espartana mas exausta,finalmente poisava e sorvia no doce de tomate - o seu último desejo.Uma rendição.

A família em bloco,felicíssima - caíu-lhe em cima.Foi mesmo comovente ver toda a tribo unida em torno de uma questão concreta.

Reunidos entendemos não matar a varejeira como se mata uma qualquer mosca.Partimos todos em procissão e fomos depositá-la,

com o doce de tomate irrepetível,junto de um magnifico cipreste.



Regressámos - em silêncio.A lua ainda estava cheia.O Voo do Moscardo - oferecia-nos os últimos acordes.









15 comentários:

Páginas Soltas disse...

Entrei... Li... E fiquei deliciada com mais uma crónica!

Soberbo!

Bom fim de semana

Bej da

Maria

Isabel Filipe disse...

um belo texto que nos mostra a nossa realidade...

gostei muito

bjs

Mateso disse...

Delícia,delícia, delícia.
Vou arranjar montes de potes de doce de tomate... vou vou... se assim puder capturar a varejeira...
A tua crónica está fabulosamente irónica, toca em tudo, que é preciso.
Perfeito.
Voilá, mon ami, mon chapeau.!!
Beijo.

Anónimo disse...

Excelente...
Gostei e voltarei!
beijinho e bom fim de semana

CNS disse...

Magnifico. Acho que vou ficar com o zumbido no ouvido...

x disse...

Palavras para quê ?

Só me resta pedir mais e mais, porque talento e inspiração não faltam.

Um abraço,

Celino

Anónimo disse...

Este texto mostra-nos como o verdadeiro talento consegue transfosmar algo que incomoda em material poético.
Há romeiros e romeiros!
Excelente caminhada esta que delicia quem entra nela por instantes e respira em uníssono com e do autor!
Princesa

Manuel Veiga disse...

amén. paz à sua alma!...

épicas estas noites de verão pequeno-burguesas!...

abraço

pé descalço disse...

Eufrázio

Prender a atenção de alguêm numa caça à mosca
só pode ser sinónimo de grande poder de criação...

um abraço

BIA disse...

Se existe insecto que me incomoda é a mosca varejeira... estremeço só de pensar...

A mosca, eu sei que faz falta ao equilibrio da Natureza...

Mas as moscas que conheço de outras nojentas varejices... para que servem?

Junto mais um pedacinho à minha pessoa...recolhido neste mundo virtual

Atrai-me a pessoa que prevejo desse lado...Dás-me licença de entrar nesta tua tribo?

Aquele abraço de peito aberto

BIA

Grey Moon Wolf disse...

O voo do moscardo ..... ouvi essa peça tocada ao piano há uns largos anos atrás... não sabia que havia mãos com 20 dedos..

un dress disse...

sinfónico...

o voo das tuas palavras!!!



requiem to her...!



beijO :)

Cristina Gomes da Silva disse...

Que pena a inspiração ser tão sincopada. Ou será falta de tempo? Boas caminhadas, então, e não se esqueça de ir dando conta das paragens.

BIA disse...

Li... Reli... Trireli...

Mais um pouco, e sei de cor!...

Se o teu mar é arável? Certamente!... Preparado para que nele caia a semente...

Cá estou a deixar-me embalar, no mar calmo(arável) de ondinha brejeira...

Aquele abraço de peito aberto

BIA

blue disse...

delicioso.